Roda Gigante (II)

Decidiu não mais tocar no assunto. Tem coisas que depois que criam casca é melhor não mexer. Um leve toque pode provocar odores desagradáveis .

Nunca mais. Passado é passado. Foi intenso, mas sobreviveria.

Mergulhado no trabalho, passava horas, até mesmo um turno inteiro sem lembrar.

Verdade que a noite em casa, ainda acessava velhos links e redes sociais quase que por instinto.

Teve momentos em que desejou que todos os sentimentos fossem controlados por botões de ligar e desligar.

Por vezes, pintava cenários extremamente românticos e, em sua mente, cenas de amores inesquecíveis rodavam lentamente, como faziam os antigos projetores do cine Imperial.

Lá sonhou ser o mais viril dos atores pornôs. O mocinho que encantava gerações. Don Juan de uma juventude rebelde que, de cabelos longos, sonhava com a liberdade sexual e política; ainda assim, nos domingos à tarde sorria rodando ridiculamente na roda gigante de um parque de diversões, por ora ali fixado.

Por outro lado, com amigos, na Praça da Mãe Preta, balançando inconvenientemente a chave do fusca branco, encardido e desgastado.

A revolução que sonhava nunca ajudou a fazer. No máximo, cantarolava Geraldo Vandré, agarrado ao seu violão com cordas de nylon.

Não tinha tantos motivos para sorrir. A vida nunca lhe fora muito generosa. Às vezes, sentia-se escravo substituto de Bentinho, no seminário; outras, o próprio Dom Casmurro.

Entendeu que tudo pode piorar, após o professor Henrique pedir a leitura e análise de Os Lusíadas.

Dos lábios de mel, restou-lhe apenas Iracema. Agora estava só. Balançou a garrafa e, por sorte, ainda tinha mais de meio litro de alegria e a lembrança da amada para poder sonhar.

(Reeditado com revisão)