AS MERETRIZES DE OUTRORA

Era dez de janeiro de 1966 e eu tinha vinte anos, quando, meio que empurrado pelas circunstâncias, ingressei num curso de formação para sargento da Polícia Militar. Com vinte e dois, já nesse posto, fui destacado para o interior do Estado, onde servi durante longo tempo de minha vida, sempre remanejado de uma cidade para outra.

Era um tempo brabo, que me propiciava concomitantemente perigos antes inimagináveis e experiências altamente enriquecedoras. Assim, envolvido, eu ia conhecendo pessoas e culturas interessantes. Minha visão de mundo se expandia e se modificava.

As funções que, vez ou outra, passei a exercer, por força da profissão, excediam os limites daquela para a qual me capacitara, que era sargento radiotelegrafista. Dessa forma, comandava o destacamento policial militar, respondia pelo expediente da delegacia e atuava como escrivão ad hoc.

Nesse mister, capitaneava diligências, enfrentava bandidos, prendia e soltava. Na medida em que mais aprendia e me qualificava, mais problemas apareciam e eu os resolvia, alguns muito do meu jeito. Naquele tempo era assim.

No recheio de tantas aventuras, contava minha pouca idade, que fazia tudo parecer uma eterna festa, o vendaval dos anos rebeldes e, acima de tudo, a ditadura militar.

Ditavam as regras do jogo, principalmente na maior parte das pequenas cidades, porque não havia comarca, o prefeito, o padre e o delegado. O que marcava mesmo, cada uma delas, por menor que fosse, por mais pobre que fosse, era a existência de uma zona de meretrício.

Era na zona que as coisas aconteciam, com exceção da prática religiosa, já que o padre ficava de fora. Como realizava patrulhamentos frequentes, quase diários, nesses locais, fui conhecendo frequentadores e “meretrizes”, entre as quais, algumas muito jovens, ainda menores de idade. Interessei-me por suas histórias, bastante tristes, umas, nem tanto, outras e passei a investigar.

Naquele tempo e naquela cultura, radical e cruelmente machista, mulher que se casasse estaria condenada a permanecer ligada à vida do marido, amando-o, servindo-o e respeitando-o, em quaisquer circunstâncias, até que a morte os separasse, mesmo que o sujeito fosse um crápula. Para ele, mais das vezes, esses compromissos se desfaziam tão logo deixassem a igreja, depois do casamento, afinal, era homem, tinha aval da sociedade para vida dupla, tripla, quantas quisesse, ir à zona, fazer o que bem entendesse.

O ditado popular de então, “o casamento é um bonde, sem janela e sem campainha, quem pegar o bonde errado tem que ir até o fim da linha”, refletia bem, para a mulher, o significava do casamento. Quando, no entanto, a caminhada se tornava espinhosa, muito acima das forças da pobre vítima e ela sucumbia, era, então, atirada à rua, escorraçada da sociedade, virava mal falada, vagabunda. O único lugar no qual encontrava guarida, era na zona. E ela acabava lá. No início sofria, chorava, sentia-se violentada cada vez em que se via forçada a ir para a cama com qualquer um. Depois, ia se acostumando. As esperanças morriam, os sonhos também, já nem sabia mais se sofria; bebia, dançava; a vulgaridade se apossava de sua personalidade. Perdera a dignidade. Então, já era, de fato, uma meretriz, embora, às vezes, não conseguisse esconder a tristeza, quando sóbria.

As mais jovens, que, por infelicidade infringissem as regras impiedosas daquele contexto histórico-cultural, não tinham destino diferente. Quando uma garota cedia aos impulsos libidinosos do namorado mau caráter, “para provar que o amava”, estava perdida. Ele a abandonava, porque, segundo seu ponto de vista torto, se entregou-se a ele, entregar-se-ia a outro e o pai, salvo alguns, de mente mais aberta, a expulsava de casa, mesmo que estivesse grávida. Ninguém mais a recebia. Se fosse estudante, a escola a rejeitava. Se empregada, perdia o emprego.

Assim, literalmente na rua, buscava refúgio na zona, onde era sempre bem recebida.

Diferentemente, todavia, daquelas que foram casadas, para as quais já nada mais restava, estas teimavam em sonhar, em cultivar esperanças. Embora já vulgarizadas e rotuladas com o estigma de meretrizes, acreditavam que, algum dia, antes que o tempo, impiedoso, decretasse o fim, o príncipe haveria de aparecer para resgatá-las.

A história mudou, os tempos são outros, as jovens respiram aliviadas, sem medo da zona, e o casamento continua um bonde. Agora, moderno, tem janela e tem campainha.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 25/11/2016
Reeditado em 26/06/2024
Código do texto: T5834629
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