ALHEIRAS DE MIRANDELA OU COMO SÃO GOSTOSAS ESSAS PORTUGUESAS!

Um dos meus melhores amigos é português. Chegou moço e já está no Brasil há mais de trinta anos. Casou, teve filhos, ganhou algum dinheiro, perdeu o sotaque e pouco se lembra das origens.

Entretanto, de duas coisas nunca esqueceu. A primeira delas é o vinho do Porto. Consegue achá-lo, com facilidade, em qualquer bom supermercado e toma-o todos os dias antes do jantar.

Mas a segunda costuma dar-lhe enorme dor de cabeça.

É que é louco, fissurado num tipo de lingüiça que só em Portugal se faz e que tem o estranho nome de alheira. As mais famosas, contou-me, são as de uma pequena cidade ao norte de Portugal, cujo nome é Mirandela.

Curioso, procurei saber mais acerca desse desconhecido petisco, confiando no taco gastronômico do meu colega português, que decididamente é um conceituado "gourmet".

A origem dessa lingüiça, vim a saber, perde-se nos tempos e, é preparada com as mais variadas carnes entre as quais frango, peru, coelho, porco, perdiz, boi e toda caça que se conseguir.

Toda essa carne é cozida e, com o caldo que se forma, faz-se uma substanciosa açorda com pão rústico. Bastante alho e azeite, além de colorau e alguma pimenta. Depois de ensacada em gomos no formato de uma ferradura, permanece alguns dias no fumeiro. Acaba por ganhar uma bonita cor amarelo-avermelhada e um perfume todo especial a convidar-nos a degustá-la.

Mas a grande tristeza é que não é feita por aqui. Nem pelos portugueses de plantão, alguns dos quais arriscam fazer, de improviso e sem qualquer técnica, uma gororoba gosmenta, semi-azeda e com gosto de pão velho que insistem em chamar de alheira.

Todavia, eu que somente a conhecia por comentários, tive a felicidade de ganhar dois espécimes da dita cuja, inclusive com as indefectíveis gravações em alumínio que lhes garantia a procedência e legitimidade.

Reservei-as para dois momentos especiais. Onde pudesse estar só e concentrar-me em sua degustação. Sem ser obrigado a compartilhá-las, confesso, com glutões espúrios e destituídos de qualquer senso gastronômico.

Fritei a primeira em azeite extra-virgem. Lentamente, como de rigor, para que assumisse externamente aquela coloração avermelhada e o aspecto crocante de tudo que é tostado com precisão e seriedade.

O perfume que dela se desprendeu, porque levemente defumada, impregnou com inconfundíveis aromas todo o ambiente.

Aos poucos, à medida que frigia, foi desabrochando e revelando todo seu divino interior.

Pronta, quente e fumegante, coloquei-a suavemente no prato. A seu lado, nada mais que uma pequena porção de brócolis ao azeite, parceiros que não a agridem, mas que a completam.

É necessário um bom vinho para acompanhá-la. Alheio às discussões doutrinárias acerca de qual o mais indicado inclinei-me por um branco, verde, português, porque lá é que nasceu o petisco que me observava à mesa qual garboso infante.

Um mastigar silencioso e concentrado, quase reverente, de vez em quando molhado por cuidadoso gole de vinho.

A desfilar no garfo uma variedade infinda de carnes em criteriosa gramatura, cozidas todas com perceptível competência. Amalgamadas em preciosos temperos, a conferir a todo conjunto inesquecível sabor. Nada a estranhar de uma típica lingüiça milenar venerada por todos quantos a conhecem.

Conto-lhes sobre a segunda que ganhei. Estando já mais descontraído, resolvi assá-la. E propus-me a degustá-la à brasileira, contribuindo, de alguma forma, com este vetusto prato, fazendo-a acompanhar do sacramentado arroz e das não menos amadas batatas fritas.

O prato ficou alegre, satisfativo e com excelente sabor. Dei-me nota dez pela invenção.

Mas como tudo não é perfeito neste mundo, apenas um pequeno senão teria a observar nesta estupenda iguaria. É que este embutido é algo cuja origem se perde nos tempos e, nossos ancestrais, decididamente, nunca se preocuparam com colesterol, altas ou baixas calorias.

E, a danada dessa lingüiça contém, lamentavelmente, muito toucinho e carnes gordas, a obrigar seja mantida afastada de qualquer cardápio racional.

Foi então que, num gesto de loucura, desprendimento e estudada irreverência, resolvi melhorar aquilo que em dez séculos nunca se fez ou tentou.

Reunindo todos meus apetrechos, enlouquecida disposição, engenho e arte (estes dois últimos qualificativos são propositais), adquiri variadas carnes das mais judiciosas procedências. Temperos artesanais, azeite estupidamente virgem, pão de glúten de dureza extra, pimenta caseira e um sem número de ingredientes cuidadosa e preciosamente escolhidos.

A carne foi limpa e expurgada de gorduras malsãs. As nervuras e partes menos nobres extirpadas. E tudo o que se apurou foi cozido individualmente no ponto certo. O caldo que despontou, cremoso, foi utilizado para amaciar uma quantidade adequada mas não exagerada de pão, de primeira grandeza.

As carnes ainda mornas perderam os ossos que as guarneciam, foram desfiadas e depois temperadas. O alho apenas discretamente frito em insuspeito azeite de oliva. Colorau, puríssima pimenta vermelha dessecada e salsinha.

O acervo obtido foi lentamente misturado com as mãos, que existem para isso mesmo. Em seguida, delicadamente ensacado em gomos; estes, individualmente amarrados e levados a defumar em fumaça de folhas por duas horas.

Seis horas de laboriosa tarefa. Agora descansar. Invento e inventor, pois que ninguém é de ferro e há de se aguardar dois dias para que os componentes se interpenetrem e sobrevenha à criatura aquela textura soberba. Mas, pese o esforço, o resultado foi impressionante e compensador.

Com o acrescer-se de um inescondível argumento: o produto continua encerrando algumas calorias; mas é light e até os mais escamosos e estertorados regimes poderão incluí-lo nas suas dietas.

Estou pensando seriamente em mudar-me para Mirandela. Lá, com certeza, produzindo estas alheiras serei amigo do rei.Deve ser verdade porque, além do poeta, foi o que disse meu amigo português.