LEMBRANÇAS DE FIM DE MUNDO

Achei o ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, do José Saramago, uma obra notável sobre a brutalidade da natureza humana em estado de necessidade, em circunstância de abandono ou impotência. Não estou exatamente comparando, até pelo fato objetivo muito diferente, mas sexta-feira e sábado, dias 29 e 30 de janeiro de 2016, entrarão seguramente para a história como datas inesquecíveis. Sexta-feira à noite, com uma temperatura rondando os quarenta graus perto das 22 horas, sobre Porto Alegre desaba um temporal, digamos, um quase-tornado, com ventos acima de cem quilômetros por hora, raios e trovões pavorosos e uma chuva inigualável, por mais de uma hora - fenômeno inédito desde que me conheço por gente. Árvores enormes arrancadas pela raiz e atiradas sobre automóveis e residências, tetos desabando, vidros de casas e de edifícios espatifados, algumas pessoas feridas, esquadrias arrancadas, falta de luz geral, o caos instalado por dois dias na cidade, circulação de veículos extremamente dificultosa e com perigo. Não é da nossa tradição ou da nossa memória, nunca fomos preparados para tão violenta reação da natureza contra a civilização, contra a beleza de parques, jardins, ruas bem arborizadas e construções prediais modernas. Para os que estavam na cidade, parecia o fim dos tempos, da forma mais cruel, abrupta e assustadora. No sábado, o tempo havia amainado, como não poderia deixar de ser, mas a falta de luz, em alguns casos de água, foi doloroso e dificilmente assimilável no século XXI. Bem, como muita gente, sofri todos os malefícios da intempérie e da escassez, eu e minha mulher, retidos, ilhados, no apartamento com os três cachorrinhos Poodle. Mas, para nós, houve um agravante. Posso até dizer que o quase tufão – para mim um tufão ou tornado de verdade - foi apenas pano de fundo de uma situação mais enervante e complicada. Tenho bastante “respeito” por morcegos. Minha mulher, tem pavor pânico. Na hora exata em que iniciou o temporal, enquanto comíamos uma saborosa comida árabe especialmente encomendada, na maior “boa-fé” e descontração, fez-se a mais absoluta escuridão na urbe, mas nem por isto deixamos de ver que entrara pelas janelas escancaradas da sala um vigoroso morcego à procura de abrigo. Bateu o terror. Tive de bancar o homenzinho da casa e, com uma decadente vassoura, esforcei-me para espantar o bicho para fora. Mas ventava tanto, chovia tanto, que era impossível abrir as janelas que tínhamos sido forçados a cerrar bem. Achei, por alguns minutos, que havia aquietado o bicho num certo canto, mas alguns minutos depois, ele retomou a iniciativa em formidáveis rasantes na sala, que acompanhávamos com lanternas, fechando a porta do corredor para a parte íntima do apartamento. O estresse durou uma hora, aproximadamente, e pouco pude me impressionar com a fúria do tempo. O morcego era o nosso foco, mais grave do que qualquer coisa. Lá pelas tantas, a natureza deu uma folga e consegui, fugindo das rasantes do bicho, escancarar todas as janelas. Foi a solução. Alívio geral. Ainda tive, meia hora depois, a iniciativa, quer dizer, a obrigação de descer à rua e fazer um breve passeio com os cachorrinhos. Para culminar, digo que o calor era tanto que dormimos com a janela do quarto totalmente aberta, dispostos a enfrentar vampiros e lobisomens. Inolvidável, impressionante, muito pouco brasileiro. Já houvera uma "furacão" pior, que Andréa enfrentou na casa de seu pai, à beira do Rio Mampituba, na Praia de Torres, mas eu não estava. Ocorreu em fins de março de 2004, o furacão CATARINA. Foram os dois piores eventos climáticos por estas bandas, creio eu, o de Porto Alegre nunca esquecerei. Imagino aqueles mais terríveis alhures.