Deus é Ruim de Conta
Deus é ruim de conta. Antes que algum fundamentalista cristão comece a conjeturar a minha pena capital por lapidação ou enforcamento ou por fogueira, preciso explicar por meio da antiga e sempre coerente Teologia Apofática que dizer que Deus é ruim de conta é o mesmo que dizermos que Ele não é bom de conta, tal como nós entendemos o que é bom. Nós conhecemos mais Deus pelo que Ele não é do que pelo que Ele é. Portanto a primeira proposição deste texto não constitui em si uma heresia, antes é um reconhecimento da nossa incapacidade de compreender plenamente o que Deus é em si.
Após ler os Evangelhos, cheguei a esta constatação: Deus não é bom de contas e nem de administração. Ele não reza na nossa apostila de contabilidade. Para defender tal tese, recorro a três textos presentes nos Evangelhos. O primeiro texto é a parábola dos funcionários da undécima hora de Mateus 20,1-16. Nesta parábola Jesus descreve o Pai como um patrão que sai várias horas do dia procurando funcionários para trabalharem em sua vinha e, no final, paga a cada um dos trabalhadores a mesma quantia: o equivalente a um dia inteiro de trabalho. Mais do que nunca, nos dias de hoje, como podemos não nos impressionarmos com um patrão assim? Ele corre atrás de novos funcionários; vai a lugares onde pode encontrar pessoas desocupadas (vai até as periferias existenciais, como diria o Papa Francisco); oferece emprego a qualquer um; sua entrevista é breve e descarta até um processo seletivo mais rigoroso; e, por fim, contrariando toda a lei de mercado, paga equitativamente os seus empregados, não se importando com o tempo e a quantidade de serviço realizado por cada um. Aos olhos deste patrão, a pessoa humana e o seu trabalho valem por si e em si mesmos. Porém, de acordo com a mentalidade capitalista e as leis do mercado, esse patrão é um péssimo empresário e, por que não dizer, alguém aparentemente injusto. Contudo, esse patrão é Pai que sabe o que faz. Como pode alguém ser responsabilizado por aquilo que não tem culpa? “Por que estão até agora sem trabalho? Porque não houve quem nos contratasse.” A falta de trabalho daqueles homens era falta de oportunidade de trabalharem e deste fato eles não são culpados. O patrão ao pagar a mesma quantia a todos os funcionários não comete injustiça porque paga aos que trabalharam o dia inteiro aquilo que foi acordado e, como dizem os antigos: “O combinado não sai caro”. O transbordamento da justiça deste patrão pode ser chamado de misericórdia. “A misericórdia ultrapassa a justiça” (Tg 2,13). A misericórdia nos busca. Ela é insistente. Ela não desiste de nós. Ela nos iguala.
As outras duas parábolas se encontram no capítulo quinze do Evangelho de São Lucas (Lc 15,3-10). A primeira diz respeito à economia agropecuária. Ela fala da ovelha perdida a qual o dono é capaz de deixar um rebanho de noventa e nove ovelhas no deserto para partir em busca desta única ovelha extraviada. E, o que é pior aos nossos olhos, esse pastor se alegra em demasia por encontrar essa tresmalhada ovelha. Deus, nesta passagem, é apresentado como um pastor que foge da lógica do consumo. A pergunta retórica dirigida por Jesus a seus interlocutores deveria, ao menos, soar estranha aos nossos ouvidos. Como pode um pastor abandonar noventa e nove ovelhas para ir em busca de uma? E onde fica o adágio popular: “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”? Que empresário abre mão de um lucro de noventa e nove por cento por causa de um por cento? Quem não preferiria perder um e ganhar noventa e nove a perder noventa e nove e ganhar um. Mais uma vez, Deus inverte a lógica do mercado! A ovelha vale por si e em si mesma. O Bom Pastor não quer perder ninguém. Mesmo que as noventa e nove ovelhas fiquem no deserto e aparentemente sozinhas, elas ainda têm umas as outras. E a ovelha extraviada? O que ou quem ela possui? Ela somente possui a coragem daquele pastor de abrir mão do seu comodismo para ir atrás dela. Só consegue entender esta relação do pastor com essa ovelha quem compreende o que é o amor. Havia mil rosas iguais a ela, mais não era ela. Na linguagem do Pequeno Príncipe, a ovelha cativou o Pastor e só se conhece bem aquilo que cativamos. A busca do Pastor parece ilógica. O valor objetivo da ovelha não valeria o trabalho e o risco. Contudo, o valor subjetivo, que é incomensurável economicamente, falou mais alto no coração do Pastor.
A segunda parábola faz parte do universo familiar, da economia doméstica (Lc 15,8-10). Aqui é descrita a busca e o trabalho de uma mulher para achar uma drácma e a festa orquestrada por ela ao encontrar a moeda. Como perder a paz por uma moeda, enquanto ainda restam nove? E, o que é pior, por que fazer festa e gastar mais do que encontrou? Deus, aqui, é apresentado como uma mulher que também não entende nada de economia. Ela perde a sua tranquilidade para encontrar um dinheiro que logo será gasto na comemoração com suas amigas. Se, aos olhos do mundo, tal esforço não valeria a pena, a mulher nos recorda o poeta e exclama: “Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena”. Somente quem se esforçou para adquirir aquela moeda em uma sociedade patriarcal, onde a mulher, em geral, não possuía acesso às finanças e nem dispunha de pecúnia para gastar a seu bel-prazer, sabe o valor implícito subjetivamente naquela moeda. Por isso, a mulher arruma a casa, faz uma bela faxina, esquadrinha e perscruta cada canto de sua morada em busca da moeda. E, mais, ela vibra ao encontrar aquele objeto que traz em si o símbolo da sua pequena dose de liberdade e autonomia. Aquela moeda de um drácma é mais preciosa que uma drácma. Deus vê além.
Deus, verdadeiramente, é ruim de conta. Ele não é bom de economia. A casa de Deus é regida por uma lei que não é matemática. A oikós divina é comandada pelo amor que se manifesta na misericórdia que possui para com cada um de nós. Deus não age de acordo com a lógica do poder e do mercado. Enfim, o conceito de bondade divina extrapola a compreensão humana daquilo que é bom...