TRISTE A ESCUTAR PANCADA POR PANCADA
Eu já fui um adepto inexorável da pontualidade. Cheguei ao absurdo de deixar a minha esposa com pré-eclâmpsia na maternidade, para ser pontual na abertura de um órgão que eu gerenciava. Também cheguei à insensatez de deixar a mulher e filhos voltarem 'cegos' de ônibus para casa, com as pupilas dilatadas, para não chegar atrasado ao trabalho.
Depois dos cinquenta comecei a pensar como o poeta Sater:
"Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe?
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Nada sei."
Os vícios, não obstante controlados, devem ser vigiados. Outro dia tive uma recaída: estava num determinado auditório, juntamente com alguns executivos do Banco do Brasil, esperando os diretores de outra instituição. Passou-se meia hora e nada! Até aí tudo bem, porque o brasileiro tem o espírito preparado para tudo começar com 30 minutos de atraso, mas quando chegou-se ao número absurdo de 60 minutos eu não me contive! Pedi desculpas aos presentes e disse-lhes que pagaria a maçada com poemas. E comecei a declamar Zé da Luz, Severino Dias, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles... ainda peguei um monte de cadernos executivos e dei de presente.
Quando a esperada comissão chegou, parei. A comissão estranhou, porque ao invés de encontrar a plateia de cara fechada, encontrou todo mundo rindo. Aí o líder perguntou o que acontecera. Mostraram-lhes os mimos que ganharam e agradeceram pelo 'presente' cultural, os poemas.
O líder olhou para mim e disse: "então o poeta Sander Lee vai ter de declamar para nós também! Não me fiz de rogado, declamei. Porém, encerrei com um quarteto do soneto "O lamento das coisas", de Augusto dos Anjos:
"Triste a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da energia abandonada!"