O meu vizinho “blasfemador”
Meu vizinho aqui dos fundos é um senhorzinho solitário que passa seus dias tentado fazer funcionar um amontoado de carros velhos estacionados em seu quintal.
Existe um pequeno muro, mais ou menos de um metro e meio de altura, que separa nossas casas uma da outra, mas que não impede que eu ouça diariamente o som dos seus xingos e reclamações em alto e bom tom, todo santo dia. Eu e minha irmã o apelidamos de “o blasfemador”, ou simplesmente, “o blasfema”, por conta disso, e também por outro motivo, que não dá pra explicar agora.
Ele tem diabete, e por não tomar os devidos cuidados que essa doença exigi, acabou perdendo a metade de um dos seus pés. O que acentua ainda mais a aparência de quem parece ter saído de algum filme de terror. De perto sua imagem é bem grotesca de se ver, pois, além da decadência da velhice e consequentemente os males da sua doença, ele não parece se importar muito com a higiene pessoal, nem tão pouco com o figurino. Sempre que eu o vejo, suas roupas estão sujas e rasgadas. Além disso, ele ainda cria alguns gatos e um cachorro, o caíque. Vez em quando eu o escuto gritando pro Caíque entrar. Eu mesmo nunca entrei em sua casa, só passo as vezes em frente ao seu portão, mas posso imaginar que não deve ser boa coisa lá dentro em termos de limpeza também.
O blasfema mora sozinho nessa casa, mas não sozinho no mundo, como eu pensei quando ele se mudou. Pois quase todos os dias uma de suas filhas vem lhe fazer uma visita. E eu sei também que ele tem outros filhos, mas esses nunca deram as cara por aqui, a não ser um deles, mas que certamente o blasfema não gostaria que aparecesse. Isso pelo o som das brigas entre os dois, quando esse filho surgi no pedaço. Parece que o rapaz já deu muito trabalho e continua dando, por conta de drogas.
Eu ainda não tive a oportunidade de conversar com o blasfema. O máximo que tivemos de contato verbal, fora sempre um bom dia ou uma boa tarde. Minha irmã é que chegou a trocar algumas palavras com ele. Ela me disse que ele é um sujeito bastante sensato e sábio nas coisas que diz. O que contradiz e muito suas vociferações diárias. Como entender o que leva uma pessoa a essa decadência toda? Tudo indica que ele apenas está colhendo os frutos de uma vida inconsequente. Ao menos foi a conclusão que cheguei, depois de ouvir algumas histórias suas, que ele mesmo chegou a contar para minha mana. Não deve ser por injustiça que tenha lhe restado uma única filha como suporte para a velhice. Por onde anda os outros parentes, os amigos dos velhos tempos? Ninguém é deixado assim de lado gratuitamente, eu acho.
Eu sei bem o quanto é triste não ter amigos. Mas imagino que na velhice deva ser bem pior. Se até lá eu não conseguir alguns, e certamente a minha mãe e a minha cachorrinha terão morrido, eu só terei o amor da minha irmã para me amparar. Será que eu também me tornarei um “blasfemador”?