Das veredas
“Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” afirma um tal poetinha por aí. O andar, esse movimento, ora macio e morno, ora pesado e quente. Andei pela primeira vez na Universidade Federal de Santa Maria, aos quinze anos. Meu irmão era acadêmico da universidade e eu vim conhecer a cidade. Tudo parecia um amontoado de fotografias novas sendo redemoinhadas, afinal, eu, moço de uma cidadezinha de menos de três mil habitantes, estava acostumado a uma mesma fotografia velha em todos os anos, meses e dias.
Aos vinte e um anos ingressei na Universidade Federal de Santa Maria para estudar (cada um tem seu tempo e seu espaço de espera, afinal, somos seres subjetivos) as Letras de uma herança cultural. Para minha surpresa, o caminho retilíneo que eu acreditava trilhar foi envergando como “o junco que se dobra, mas sempre segue em pé”. Memórias são, também desafios e, nesses oito anos de UFSM, vi o meu nojo pelo cheiro desagradável do esgoto a céu aberto da Avenida Roraima transformar-se em sorrisos, mesmo que de cimento, de um sem fim de jovens em direção aos seus sonhos. Vi, também, nos últimos anos, sobretudo os dois últimos, em que eu já estava no mestrado, uma abertura à discussões imprescindíveis à uma universidade precursora como a nossa. E digo nossa, porque ela nunca morre em nossos corações e em nossas memórias. Recordar, que é trazer novamente ao coração, diz respeito ao que faço aqui, caro leitor. A UFSM abriu-se a debates de gêneros e de sexualidades, a UFSM abriu-se ao nome social dos sujeitos transgêneros, a UFSM abriu-se a um diálogo maior com movimentos sociais, em suma.
Entretanto, há muito a ser feito, pois ainda temos de lidar com, por exemplo, a ilegalidade da profissão docente em nossa universidade. Sim, para ser docente independente do curso em que você ministra aulas, você deve ser licenciado, pois é, exatamente isso, que distingue a minha profissão das demais. Ser licenciado é ter não somente aporte teórico-conceitual e metodológico, mas também, e, sobretudo, é ter conhecimentos pedagógicos e humanos dentro de uma práxis didática. Sonharei com o dia em que o meu profissionalismo professoral não seja jogado no lixo, ou como uma espécie de metáfora, não faça ressurgir o esgoto a céu aberto da Avenida Roraima.
Guardarei em mim, o cheiro e o gosto das pitangas maduras, colhidas e saboreadas por mim e por alguns amigos meus, anualmente, durante o trajeto até os pavilhões da Jornada Acadêmica Integrada. Guardarei em mim, a coragem e a força de muitos diretórios acadêmicos contra ingerências de seus cursos. Guardarei em mim, a antes calmaria para chegar até a UFSM (no começo da minha graduação, eu levava cerca de trinta minutos de ônibus para chegar do centro até o câmpus; desde 2012, se leva em média uma hora e meia). Guardarei em mim, a singularidade da UFSM: aglomerar sujeitos de diferentes partes do nosso estado e de outros estados do Brasil e dessa miscelânea, fazer emergir um conjunto de trocas humanas em seu sentido mais essencial, que é o colocar-se no lugar do outro, integralmente. Guardarei em mim, a boate do DCE, hoje fechada, onde tantos jovens universitários tinham a oportunidade de comungar suas alegrias e suas dores. Guardarei em mim, as tentativas de renovação das Letras Português, em termos de reavaliar currículos para o que se propõe uma licenciatura: conjugação entre teoria e prática. Guardarei na memória, as tantas ofensas verbais que recebi em nome da minha homossexualidade e em nome das minhas concepções didático-pedagógicas, e, portanto, em nome da minha identidade, que é humana e que é profissional.
Melhor do que guardar é gritar ao mundo esse caminho que foi sendo tecido sem um rumo certo, afinal, o andar é o caminho. Grito, então, aos tantos universitários de classes baixas que tiveram acesso à UFSM; aos tantos afrodescentes que adentraram à UFSM, aos tantos LGBTTs que conseguiram seu espaço na UFSM; aos tantos indígenas que abriram as portas em direção à UFSM; aos tantos “interioranos” como eu, que hoje, podem não sussurrar medos, ou vergonhas por serem boicotados pelas injustiças sociais, mas que podem, primeiro, em altíssono, exultar suas conquistas, que são as mesmas, porque inscritas sob um mesmo signo: o da resistência.
Meu caminhar na Universidade Federal de Santa Maria já não é mais morno, nem quente, nem macio, nem pesado. Meu caminhar na UFSM é truculento, porque enxergo a mim e a tantos companheiros como seres de luta, que não significa guerra, mas coragem para desestabilizar o posto, o pré-concebido. Desejo a todos os que cruzarem o arco da UFSM com vistas a construir um sonho, um descortinamento de si como seres socioculturais, um desmantelamento dos lugares sociais pré-fixados, um destroçamento do próprio caminho, que nunca será um caminho se se achar que ele não está sujeito a becos, à vielas e à ruas sem fim. Faça o seu caminho, mas se dispa, esteja nu, esteja aberto a desvelar seu mais elementar em estreita relação com o mais elementar dos outros que lhe circundam. Uma universidade não é um espaço para conhecimentos estanques, ou uma jaula de adestramento. Uma universidade deve ser um espaço de rompimento de correntes (e aqui me vem em mente as correntes de ferro que tantos negros tiveram de romper ao longo da história), um espaço de co-construção do conhecimento (duvide sempre das verdades absolutas de seus professores), um espaço de busca e de questionamento, mesmo que isso faça você atrasar a sua graduação em um, dois, três anos, etc. O mais importante em sua formação é o caminho individual que você trilha e para tal, é, preponderantemente, importante, que você primeiro, reconheça que a universidade não é um recinto somente seu, nem da sua meritocracia. A universidade é um encontro entre o seu empenho particular e o mesmo empenho particular de outros sujeitos, os quais, muitas vezes, senão na maioria das vezes, foram sabotados pela história, pela cultura e pela sociedade como um todo.
Encontre a si e desregre-se, desgoverne-se, desequilibre-se, perturbe-se, imodere-se. Somente assim, você poderá dizer que é uma memória na e da Universidade Federal de Santa Maria. Caso contrário, você foi apenas um aluno que cumpriu com burocracias para adquirir um diploma e para ter um emprego. Será mesmo que é para isso que serve uma universidade? Acho que não. Uma universidade aponta caminhos, assenta esperanças, formula debates, inquire posições, replica e responde com os que a enfrentam e contende sujeitos e ideologias.
Como um casaco de lã, daqueles ainda feitos pelas nossas avós, costure o seu ser sociocultural. Tricote a sua subjetividade em relação com outros seres socioculturais (também com subjetividades) dentro da universidade, pois somente com o ajuntando, o remendando, o suturando, o alinhavando é que você será, para muito além de um universitário, gente. Gente que participa. Gente que acolhe. Gente que reivindica. Gente que utilizará o que obteve com a universidade não para ganhar dinheiro, mas para sobreviver através do dinheiro e, sobremaneira, para transformar o mundo.
Que o seu caminho, também se faça ao andar. Hoje, depois de oito anos na Universidade Federal de Santa Maria, posso dizer que estou preparado para atuar no desenvolvimento de um mundo melhor, entretanto, não o farei e não o posso fazer sozinho, tampouco não utilizarei apenas o meu trajeto na UFSM, mas também, senão, levarei em conta o meu percurso singular junto do percurso singular de outros sujeitos da e na UFSM. Caminhe! Serei sim, uma memória da UFSM, não oficial, por certo, mas porque tenho a plena convicção de que nela e com ela me constitui por fragmentos de tantos indivíduos (professores, colegas, amigos, funcionários, desconhecidos) e de tantos espaços de reflexão. O todo só faz sentido pelas partes. Meu todo não é apenas a UFSM, ou as partes dela. Meu todo é esse constante processo de edificação de um ser sociocultural que se imbrica com outros seres socioculturais (não somente os de dentro da UFSM, mas também os de fora da UFSM). Que seu caminho e que sua memória na UFSM sejam de veredas!