Belo, recatado e do lar?
Naquele dia eu passei o tempo todo meio sem graça sentado naquele sofá. Vendo e ouvindo aquelas duas se alfinetarem, e entendendo muito pouco o que acontecia entre elas, ou melhor, entendendo nada. A tia de Jessica pintava quadros e tinha uma certa compulsão obsessiva por organização, que tentava disfarçar devido a minha presença. Eu estive por lá em seu apartamento quando faltavam poucos dias para o natal, e pude ver algumas de suas pinturas penduradas na parede, e perceber a guerra fria entre ela e a sobrinha, por conta do mínimo que fosse posto fora de seu lugar de costume. Suas telas com grandes maçãs suculentas lembravam algo como um van Gogh. O ex-marido da tia, o que chegou tempo depois, era grandalhão e branco como uma geladeira Brastemp.
Eu estava a poucas horas de viajar para passar o fim de ano com a minha irmã lá em minas gerais. Foi quando Jessica me ligou e propôs que antes que desse o horário deu ir para rodoviária, fosse com ela na tal tia. A tia exigia a presença da sobrinha querida nem que fosse só para o natal. Concordei com a ideia. Jessica iria me pegar próximo ao shopping internacional de Guarulhos, Viria ela e sua cachorrinha em seu carro.
Assim que entrei no carro lhe entreguei o buquê, mesmo com as flores murchas, como ela havia me feito prometer. Alguns dias antes havíamos marcado de ir assistir uma peça de teatro, mas acabou acontecendo de a chuva afogar nossos planos e tive de guardar, a pedido dela, aquelas flores para lhe entregar num próximo encontro.
Já sentado no sofá no qual permaneci até a hora da minha saída, Jéssica me trouxe uma revista sobre a vida do pintor Gustav klimmt para que eu ficasse lá folheando suas páginas, me distraísse enquanto ela mexia em mais algumas coisinhas aqui e acolá. Até me fez vestir uma camiseta estranha, que também havia encontrado em meio a sua bagunça, mas, graças aos Deuses, logo se cansou e veio sentar ao meu lado no sofá, apoiando os pés sobre minhas pernas. E com um olhar de coitadinha, linda, me falou da constante preguiça que há abatia, e de como se sentia à vontade comigo, mesmo me conhecendo a tão pouco tempo.
Sua cachorrinha, que se chamava Bina e estava prenha, ficou limitado ao espaço da cozinha. Foi ela a primeira a perceber a chegada do ex-marido. A primeira a ouvir os passos na escadaria do apartamento e depois as batidas na porta e nos avisar aos latidos.
“Ei, chegou mais uma geladeira”.
Maicon era um sujeito grandão e bem educado que se sentou no sofá a frente do que eu estava e deu início aquele bate papo estranho, ao menos pra mim, entre ele e a tia, com comentários esporádicos de Jéssica.
Enquanto o papo rolava, Jessica e eu trocamos mensagens por celular (O mal do século). Ela me dizia o quanto achava incrível aqueles dois divorciados, que viveram juntos durante anos, se darem tão bem. Para mim que não sabia exatamente do que falavam, achei tudo formal demais, mas tudo bem. Terminada as formalidades Maicon e Jéssica foram me deixar na rodoviária. Fui para minas. Depois daquele dia nunca mais vi Jéssica pessoalmente.
Chegamos ainda a conversar pela internet. Foi numa dessas conversas que ela me disse que a tia havia me achado bonito, bom pra quem sabe ser posto num quadro. Será que eu tenho cara de maçã?
Na verdade eu nunca entendi qual era realmente a da Jéssica. Na época ela estava prestes a se formar numa pós-graduação e vivia tensa por conta disso, o que talvez não justificasse a impressão que passava de ser uma pessoa sempre meio aérea, indecisa, confusa. Ainda assim eu gostava daquela garota. Estava curtindo aquele seu jeitinho quase que inocente, de quem queria me transformar numa figura o mais próximo possível dos seus "ideais". No começo deixei rolar, até chegar certo momento que perdeu a graça. Aquela menina não gostava do que eu "era" e sim do que eu podia "vir a ser". Dei-lhe um basta: "Ou me aceitava do jeito que eu era ou nada feito". Nada feito. Acho que eu a assustei. Exagerei na minha sinceridade em todos os sentidos. Pois quem era eu para Jéssica? Um vagabundo louco cheio de ilusões, um irresponsável fodido e sem futuro?
Não deu nem tempo deu explicar que eu não era nenhum louco irresponsável iludido com uma visão romântica que criará para fugir da realidade da vida, ou pior, um ingênuo, um idiota (Não totalmente). Não deu tempo deu mostrar pra ela que eu era diferente, anormal, esquisito aos olhos de algumas pessoas, mas que esses não eram meus defeitos e sim minhas qualidades. Não tive tempo de lhe falar dos meus livros, do meus discos, filmes e poetas, pois se tivesse tido a oportunidade de lhe falar deles e de como todos eles me educaram e me tornaram o sujeito gente fina que eu sou, talvez ela teria escolhido ficar comigo e não com aquele cara feio lá. Não tive chances de demonstrar para ela que eu realmente era um sujeito gentil e inteligente, e não um psicopata cativando sua vítima, no caso ela. Não deu nem tempo deu entregar a pedrinha que ela pediu que lhe trouxesse de presente de Santomé. Não deu tempo deu lhe dar amor, sexo, sacanagem, paixão, liberdade, e por conta de tudo isso sermos ricos, mesmo sem fortuna guardado no banco. Não deu tempo deu ter lhe feito declarações toscas e piegas com essas. Não deu tempo de testar se tudo isso aconteceria de verdade mesmo.
Ela não me deu o ensejo de lhe dizer que a minha preferência, por exemplo, por uma bicicleta a um carro, não era falta de perspectiva na vida, muito pelo contrário, era a sabedoria dos livros, que me fazia fluir sem um certo tipo de peso que carrega nas costas tantas pessoas por ai (Ou substituir por outros pesos).
Pois o que adianta passar a vida toda me enchendo ou querendo me encher de coisas, mas ser vazio?
O essencial é invisível aos olhos...
Seria por essas e outras que me achavas tão estranho, menina do cabelo vermelho?
Não deu para dizer pra ela que as vezes eu era realmente ridículo, piegas, tosco, ingênuo, mas comparado com todas as pessoas infelizes que ela certamente conhecia, valia o risco?
Eu teria lhe escrito um bocado de poemas ruins, mas sinceros.
Eu teria lhe feito rir.
Mas agora...