Suco de limão e Dostoiévski
No que combinam suco de limão e Dostoiévski? Pois é, não faço a mínima ideia também. Mas, há uma semana atrás – isso antes de ter voltado a trabalhar – eu vivia uma rotina que começava comigo colhendo alguns limões do pé carregado lá no quintal de casa, espremia-os dentro de um copo de vidro com água e açúcar, sentava meu rabo sonolento na cadeira da cozinha apoiando o cotovelo na mesa, e lia pelo menos um capítulo inteiro de crime e castigo pensando nas minhas próximas distrações para o dia, que geralmente eram ouvir música e limpar a casa tapeando. Escrever ou revisar algo escrito anteriormente, e assistir um ou dois filmes, rematando assim o dia nos fins de noite. Entretanto não era uma rotina simétrica, às vezes nalgumas noites deitado na cama brigando com os pernilongos, eu antecipava um plano para o dia seguinte dentro daqueles pensamentos que tagarelam na mente da gente antes do sono vencer a batalha, “Amanhã vou fazer isso e depois aquilo e mais àquilo lá”.
Aquela maldita zumbindo ao pé do ouvido. Rondando a minha paciência. Sedenta por sangue, o meu sangue! Cubro todo o corpo, dos pés à cabeça. Não resolve, ela também está debaixo do cobertor. Como isso é possível? Ela espeta dolorido no braço. Ai filha da puta, isso dói! Eu a abano. Ela espeta dolorido na orelha. Desgraçada! Eu abano. Ela espeta dolorido no pé. Vadia! Eu abano... De repente surto de raiva, sacudo todo o corpo levantando cobertor e travesseiro bruscamente. Passam-se alguns segundos de paz, mas logo ela torna a perturbar. Ela nunca desiste, parece estar desesperada, faminta, disposta a arriscar a própria vida. Eu tento esmaga-la em um tabefe certeiro, mas estapeio meu próprio rosto. Ela sempre se safa à safada! Por fim pego no sono. A que horas pernilongo dorme?
O dia amanheceu. Ás onze da manhã eu mergulhei da cama até meu suco de limão com Dostoiévski. Em várias partes do meu corpo surgiram pintinhas vermelhas e uma coceira ardida. “Ah, Então é assim, beleza. Você venceu a batalha, mas não a guerra”. Já que hoje vou fazer “isso e depois aquilo e mais àquilo lá,” aproveito e compro um SBP multi inseticida mata mais do que a rota, e veremos logo mais à noite quem vai sorrir por último!
Nada de tapear a casa. Nada de música, a não ser passar algumas no celular para ouvir depois. Já estava tudo resolvido. Concentrei apenas em Terminar de beber todo o capitulo do Dostoiévski com suco e fui direto para o banho:
“Cara, você precisa arranjar uma namorada, isso sim. Ou será que pretende passar a vida inteira lamentando sua solidão e se masturbando? Realmente, você tem que ser salvo, mas eis a questão: seria mesmo o caso, por uma mulher? Por Jesus cristo? Os dois juntos? Ou por você mesmo? Seu fraco! Deixa-lo aos próprios cuidados é mesmo que condena-lo a eterna tortura!”
Sempre tive essa mania de filosofar comigo mesmo debaixo do chuveiro. Pena tudo descer pelo ralo por fim, literalmente.
Vamos ver, por onde começar? Primeiro buscar os livros emprestados e depois comprar o restante das coisas da lista que fiz. O que ainda falta mesmo? Falta comprar um fone de ouvido original para não quebrar rápido demais, como todos os outros. Uma bomba de encher pneu e uma câmera de ar para bicicleta. Filmes...
Eu conferindo:
Suco e Dostoiévski, ok. Banhado e vestido, ok. Mochila arrumada com: óculos escuros se acaso o sol resolvesse aparecer, bloco de notas e um guarda-chuva. O CD que gravei para uma colega, se de repente eu decidisse dar uma passada na casa dela... Pronto e então?
E então era só esperar.
E eu esperei, esperei e esperei parar de garoar assistindo um filme chamado “a voz de uma geração”. Muito bom por sinal. Minha mãe passou pelo quarto e disse, “assistindo filme de novo menino. Você vai sair?”.
Minha mãe costuma dizer que quando ela coloca um filme pra assistir, é o filme que assiste ela.
“Eu sempre pega no sono filho”.
“Sim mãe. Vou sair”.
Quando finalmente a garoa deu uma trégua coloquei a mochila nas costas e parti rumo à primeira missão, pegar os livros.
Meus pensamentos no caminho antes de chegar à casa da menina para quem havia emprestado os livros:
“Não gostam de filmes nacionais. Claro, assistindo esses filmes como Xuxa e os doentes, Didi mocó e os bocós, só podia mesmo”.
“Oi. Vim buscar os livros”.
“À tá, esperai, vou pegar e já volto”.
“Gostou deles?”.
“Sim, gostei. Obrigado”.
“Tchau. Até outro dia desses”.
“Tchau. Até”.
Entrei no ônibus com aquela velha sensação de que todos estavam me olhando. E não estavam? Isso logo me fez lembrar que segunda-feira era dia. Sempre achei que o certo seria trabalhar dois dias e descansar cinco, não o contrário. Ficar sábado e domingo em casa é uma condicional muito injusta. Onde ficam os direitos humanos nessa hora? De segunda a sexta saio da senzala e pego o navio negreiro até o tronco. Depois torno a pegar o navio negreiro até a senzala novamente. Oh, vida cruel!
Eu encaro o trabalho, o ônibus, como algo que tende a ficar pior a cada dia, progressivamente. No começo da semana (isso a parti de terça-feira) até estou com certa disposição otimista. Faço algumas gentilezas do tipo segurar algumas bolsas, dar alguns bons dias, cedo o lugar a uma jovem senhora de oitenta anos junto com a neta de dezessete, grávida de gêmeos, com dois filhos (um de colo) e duas bolsas grandes penduradas em cada ombro, indo resolver o problema da aposentadoria da velha no INSS às seis horas da manhã.
“Eu gosto de chegar bem cedinho meu filho. Obrigado. Deus lhe abençoe.”
Depois disso resta apenas ir aos pouquinhos para o fundão, nuns passinhos de lado que nem caranguejo. Seu estado de espírito da terça-feira releva um folgado no meio do caminho de mochila nas costas fechando o corredor “com licença, por favor.” Mas, não demora muito para alguém ainda mais folgado passar empurrando sem se preocupar em pedir desculpas. “Esperai, esperai, esperai, vai descer!”.
Será que ainda consigo um lugarzinho pra sentar? A disputa é grande. Basta surgi uma vaga que alguém mais ligeiro toma logo à dianteira. Enfia o bração na frente barrando seu corpo de passar, sem dó nem piedade. “Cada um por si e o prefeitura e o secretario de transporte contra todos”.
Anotei no bloco de notas:
“Quando Vilma viu o mar, viu que o mar não era tão vil. Ah, Vilma!”.
Uns carinhas mal-educados entraram no ônibus discutindo aos berros a pelada que acabaram de jogar. Como se não houvessem mais ninguém por ali ou que todos estivessem interessados a ouvir sobre o assunto deles. Tipo aqueles moleques ouvindo Funk sabe? Nessas horas da vontade de ter uma arma. Primeiro pedir com educação para eles falarem mais baixo, e lógico que alguém da turma vai logo se manifestar “eu falo do jeito que eu quiser meu chapa” Então eu sacaria a arma e diria que eu era um policial (para eles não chamarem os mesmos para mim depois, que não sou besta) e mandava todo mundo descer.
“Então vão falar do jeito que vocês quiserem lá na rua, seus merdas”.
Vinte minutos depois saltei do ônibus.
“Que começassem as compras então.”