E por mais surpreendente que pareça
Já faz quase dois anos que eu moro aqui na casa de baixo e vez em quando tudo fica silencioso. Por algum motivo, as vezes acontece de as duas sapatas que moram lá na casa de cima ficarem quietas. O máximo que se ouve de barulho é um arrastar de pés preguiçosos sobre o azulejo. E por mais surpreendente que pareça, até a sapata rechonchuda, quando coincidem seu dia de folga e o silêncio, caga menos. O que só reafirma a minha teoria, que de certa forma o barulho realmente vem de dentro dela?
Fora o tédio, que as vezes é deveras insuportável, minha vida nesse quarto é maravilhosa. Aqui eu desfruto de bastante privacidade. Tenho a companhia dos meus livros, ouço meus discos, assisto meus filmes, posso fazer o que me der na veneta, diferente de quando eu morava com a mãe. Apesar das mordomias que eu tinha, e de amá-la, a mãe não era nada fácil de conviver, sabe como é né...
A Maria e o João-de-barro estão reconstruindo sua casinha lá em cima do poste. Daqui da minha janela eu os observo levando barro no bico para reerguerem seu ninho de amor. Bons engenheiros e arquitetos que são, eles precisam apenas de barro e saliva para reedificar sua morada, mas acontece que parou de chover, e com o sol a terra está secando, a lama, o barro desaparecendo. Tudo bem que eles não precisaram pegar alvará com a prefeitura, mas será que essa estiagem vai atrasar a obra do casal? Isso sem falar que o peste daquele moleque pode aparecer a qualquer momento com seu estilingue e destruir tudo como da outra vez...
A chuva voltou. As paredes da casa já estão prontas, mas o teto ainda não. Onde será que estiaram da chuva João e Maria? Hoje no finalzinho da tarde houve uma cantoria e eu ainda não sei o motivo de tal apresentação exibicionista. Só pode ter sido exibicionismo aquilo. Vai ver era uma festa de inauguração antecipada, sei lá. Inauguração não, reinauguração. Aquele moleque endiabrado! O João e a Maria só queriam viver suas vidas em paz, ai vem aquele buliçoso e pum! Igual a mim, que também só quero mesmo é ficar em paz na minha.
Eu desisti de nadar contra a correnteza. Mas tão pouco vou deixar ela me levar ou nadar a seu favor. É complexo, confuso e até meio impossível isso, mas é dessa forma que por enquanto eu me pretendo.
Você não me conhece.
Nunca me viu.
Me chamo vários nomes.
Moro em lugar nenhum.
Eu não existo.
Nunca estive.
Eu não sou!