As goteiras

Se por um acaso uma daquelas gotas que caiam do telhado naquele instante pudessem matar uma pessoa afogada, Gustavo seria um dos infelizes que teria a morte mais ridícula do mundo, entretanto ficaria terrivelmente contente por ela. Mas, aquelas gotas cristalinas de água da chuva que desabavam do alto até o chão, só serviam mesmo para deixar o piso molhado e escorregadio. Mas vai que alguém escorregasse e batesse, Deus o livre, a cabeça na quina da mesa? Sua mãe cautelosa do jeito que era, estaria a salvo daquela possibilidade catastrófica, mas com toda certeza viria correndo de onde estivesse, do quarto, da sala, do banheiro... Acudir o pobre coitado que caiu. E se fosse ele que tivesse caído? Não dava para morrer afogado dentro de uma goteira, mas quem sabe então com uma cabeçada certeira na quina da mesa? Era uma chance que não poderia lhe escapar. Gustavo até podia imaginar seu velório cheio de gente chorando, dos quais muitos o esqueceriam no máximo em uma semana.

- Coitadinho, morreu de que?

-Testada na quina da mesa!

Pois bem, como ele ainda não havia morrido nem afogado na goteira, nem de uma testada na quina da mesa, esperava ao menos que logo parasse de chover. Há dias que a chuva não dava trégua, e se continuasse daquele jeito viria por ai o segundo dilúvio, com toda certeza. Tudo bem que vivemos em tempos modernos. Com toda a tecnologia que existe hoje, a arca seria um luxo que só vendo. E Gustavo acreditava que todo mundo subiria nela dessa vez, por que ninguém é besta para cometer o mesmo erro duas vezes. É?

Era sexta-feira à noite, E para variar, com chuva.

A cabeça de Gustavo doía, mas naquele instante um pouco menos, algo que variava bastante no decorrer do dia. Já havia se passado mais de uma semana em que nalguma hora do dia chovia, e a dor de cabeça lhe incomodava, entre muitas outras neuroses dentro de seu cérebro, em seus pensamentos, que também lhe eram muito incomodas. Devido a essas perturbações em sua mente, resolverá para aquele novo ano as seguintes resoluções: 1- Se livrar de uma vez por todas dos supostos amigos que nada queriam com ele. 2- Excluir-se das redes sociais, algo que fizera na véspera do natal. Antes só, do que mal acompanhado, ou ignorado. Era o que dizia mais ou menos o ditado, não era? 3- E viver uma vida invisível.

No sábado mais uma vez choveu aquela chuva toda. Mas antes da chuva foi a ventania correndo o risco de arrancar o telhado fora. Ele estava na casa da irmã, que morava na casa encima da dele. Seu coração acelerou as batidas do medo que deu. Então depois a chuva parou e tudo ficou silencioso, limpo e claro, a mata, o céu, o portão, a parede do vizinho, o quintal, o canteiro, o pé de boldo lá fora perto do campinho, a placa com o nome da rua pendurada no poste... Tudo mesmo. A chuva lavou o bairro inteiro. Pois bem. Ele mesmo continuou gripado, com uma dor no peito quando tossia. O jeito foi assistir um filme já que não conseguia mesmo fazer mais nada. Nada. Ele até que tentou. Assim que acordou pegou um livro e leu uns dois capítulos mas não deu mais. Então ele pensou: Que tal lavar a louça, “limpar a casa” ouvindo música? Beleza, mais e depois? Baixou um filme, nina, e assistiu. Beleza, mais e depois? Depois colocou o disco do Grieg para ouvir e escreveu algumas coisas. Beleza, mais e depois?

Depois ele não sabia... O disco acabaria. A dor da tosse continuaria. A noite cairia e apagaria a limpidez das coisas janela afora... A vida continuaria.

Ainda era a chuva lá do outro lado da porta da cozinha. Gustavo ensaboava com música a louça suja na pia e dali a mais alguns minutos planejava fazer qualquer coisa que ele ainda não sabia direito o que seria. Foi um ovo branco ou marrom que ela tacou?

Na noite passada, por volta das duas da madrugada, seus vizinhos da casa ao lado “festejavam". Som alto e bate papo estridente no ouvido do sono de quem queria dormir e não conseguia. A seleção brasileira havia perdido por sete a um para Alemanha na copa do mundo, e eles, os vizinhos, bebiam amargamente a derrota até aquela hora.

-Era só chamar. Não precisava jogar um ovo.

- Eu chamei, chamei, chamei, mas ninguém ouviu. Vê se dá uma maneirada ai meu.

- Ah minha filha, agora você vai dormir na casa do @#%$%*. Quem já se viu tacar ovo na casa dos outros assim.

-Eu vou chamar a polícia!

-Então chama que eu pago pra ver!

-Ah vai tomar no #%¨&*(&¨@! Eu levanto as quatro pra ir trabalhar meu!

- Vai você sua #$%¨@#$%! Azar o seu porque amanhã eu não trabalho.

Mesmo lavando a louça aos bocejos, a briga entre suas vizinhas até que tinha sido divertida. O que lhe incomodava mesmo era uma dorzinha ardida que sentia em seu polegar da mão direita. Gustavo havia cortado o dedo com um estilete cego e enferrujado duas semanas antes. Na hora que aconteceu pensou que tinha decepado metade do dedo de tanto que o sangue jorrava. Como num filme trash de terror, sabe. Talvez uma boa trilha sonora para aquele doloroso episódio fosse a música "cortei o dedo" do Carlos Careqa. Mas, talvez não fosse uma boa trilha para um filme trash de terror sobre um cara que mutila o próprio dedo após tornar-se um zumbi demoníaco.

Dor desgraçada cortar um dedo com uma lamina tão fininha daqueles. Lamina de estilete. Na hora deu foi uma tontura de desmaio, veio um gosto de sangue na boca. Uma vontade de tudo e de nada ao mesmo tempo, ou voltar no tempo e não cometer aquele erro fatal. Estupidez sua usar de apoio uma ripa daquelas para cortar placa de gesso. É, mas não adiantava mais lamentar o sangue derramado. Queria dizer, Jorrado.

No dia, o pior de tudo, foi ter que aguentar a dor calado para não criar reboliço com os técnicos de segurança do trabalho. O serviço ser suspenso temporariamente. Nem curativo pode fazer. Teve de continuar trabalhando, enrolando papel na ferida, papel branco que logo ficava vermelho de sangue, e segurar a vontade de desistir de todo aquele seu suplício. E que dor...

O almoço é que foi difícil mesmo. Ele lá com aquele papel no dedo, como se o dedo estivesse engessado para quem visse de longe. Provavelmente ainda estava com o rosto pálido do susto e da dor que sentia. Fazendo o possível para não notarem. Se esforçando para segurar a bandeja e pegar a comida naturalmente.

(O zumbi demoníaco decepador de dedos, inclusive do próprio dedo, entra no refeitório com seu estilete afiado, onde naquele momento todos almoçam, e ...)

Para o bem o para o mal deu para segurar a dor até o fim do dia. Já passada alguns dias do fatídico acidente, olhando para dedo cicatrizando, Gustavo via que seu polegar escapou por pouco de ser arrancado pelo zumbi do estilete hahaha.

Entretinha-se com sua fantasia, enquanto enxaguava o ultimo copo. Havia decidido o que fazer logo mais.

A mocinha vinha correndo lá longe. Buscava a todo custo da sua capacidade física chegar a tempo antes que o semáforo passasse do vermelho para o verde e não a permitisse atravessar a faixa de pedestres até o outro lado da rua, onde o ônibus que precisava pegar estava parado se abarrotando de passageiros. Ele a observava pela janela e pode ver quando ela bateu de frente com o momento exato em que os carros voltaram a circular, ultrapassando um após o outro, a faixa. Viu a ansiedade em seu rosto se desfazendo com um pequeno desgrudar de pés do chão e o abanar da mão no ar. Lamentando desanimada como quem diz baixinho a si mesma; Buceta do caralho!

Depois sorriu um sorrisinho sem graça de frustração, concluindo o obvio, o jeito era esperar o próximo. E ela ficou lá esperando enquanto ônibus partia com ele dentro...

Tiago Torress
Enviado por Tiago Torress em 26/03/2016
Reeditado em 26/03/2016
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