Terra Sonâmbula
Mia Couto está em Pa raty, relançando Terra Sonâmbula no Brasil. Relembro o que escrevi há quase dez anos, numa quase perdida página de diário:
Leio as últimas páginas de Terra Sonâmbula, de Mia Couto. O ciclo onírico se fecha; tudo é sonho quando a miséria é demais, quando a realidade é opaca demais. A terra viaja quando os homens dormem; a paisagem se transforma, muda de lugar, de fisionomia. Moçambique são os campos da morte, onde só sobrevivem os sonhos. A realidade é um espelho fantástico, estamos do outro lado, e somos a morte, e não somos. Estamos tão impregnados de não-ser, que só podemos ser o sonho dos outros. E os outros também são sonhos de outros, um sonhando o outro e o outro sonhando o um, num círculo sem fim.
Mas Terra Sonâmbula não é isso. É muito mais que isso, e muito mais simples. Simples como o sonho é simples. Não tão simples como a nossa filiação comum, a dele assumida, com orgulho, a minha renegada, mas de que não posso fugir. Tenho dito que o escritor brasileiro é filho de Machado de Assis, mesmo quando renega essa filiação; o jeito torto de olhar, indeciso, escrevendo como quem procura, acertando no que vê e no que não vê, isso somos nós e isso é Machado. É muito mais, mas é isso, e sempre é Machado. Mas Mia Couto é de Moçambique, não pode ter o jeitinho e a falta de jeito do brasileiro. Não se formou escritor lendo o caranguejo zarolho. Formou-se escritor lendo Guimarães Rosa, malgrado suas raízes bem moçambicanas e, certamente, portuguesas. Por isso que renego Guimarães Rosa, como pai, porque venho de Machado; porque quero aprender a escrever com Graciliano, e mesmo renego Machado, de que me orgulharia, mas vir de Graciliano representaria um domínio da linguagem, do que quero dizer, que é o meu sonho de escritor. Guimarães Rosa é Machado elevado a uma potência maior, no que se refere a trabalho com a língua e a trabalho com a dúvida, os mesmos vai-véns, multiplicados, na procura do que dizer. Esse caráter indeciso do trabalho literário não encontramos em Graciliano, que vai direto ao ponto.
O que Mia Couto não precisava era se escravizar tanto de Guimarães Rosa. É bom demais pra precisar se escorar nos outros. Já disseram isso de mim; reconheci que é verdade, navego em águas roseanas. Navego mal, mas navego; contra a vontade, mas navego. Minha ficção – e, descubro ou imagino agora, talvez também minha poesia dos últimos anos – têm imagens roseanas, palavras, atmosfera. Por mais que eu diga que fui direto à fonte, o caipira que eu sou, e Valdomiro Silveira, que foi onde bebeu Guimarães Rosa. Mas o leitor não quer saber disso: a linguagem de Guimarães Rosa é marca registrada.
Mia Couto – muito mais que eu, de mim não garanto – tem seu mundo próprio, e fique lá com ele, construa lá sua grandeza . Lá onde o grande parece pequeno – miúdo! – e o grande ou pequeno, míticos. Conviva, construa, com seus mitos, o seu mundo ficcional, só seu, como quem não precisa, de fato, de outrem.
Que beleza de livro, Mia Couto, e que tristeza de mundo! Por que será que a beleza tem que ser triste? Não tem, mas é. Dizer, com Borges, que a felicidade se basta a si mesma, que só a dor precisa ser cantada – é bonito, acho até bastante provável que seja certo, mas é estúpido. A flor, o sorriso, a criança, a mulher, a água, não posso cantar apenas a sua beleza, não posso cantar apenas porque existe tal beleza? Não; canto a flor, quando é pisada, quando murcha, porque a imagino, a sei efêmera, porque isso dói; por isso canto a mulher, a água, beleza que perece. A criança envelhece; o sorriso se contrai num ríctus de amargura. O fogo da beleza dura pouco, e essa beleza, símbolo da permanência, é cinza esfarelando-se entre os dedos. Somos pó votado ao pó; não foi preciso os deuses criarem o sofrimento (como diz Borges, citando Homero), para que os poetas pudessem cantar: já existia o homem, essa pouca cinza fria.