Edifícios

Era uma grande cidade – que poderíamos nomear, se quiséssemos. Mas não faria diferença. No aspecto fundamental que nos tange, era exatamente igual a qualquer outra grande cidade: posto que já não pudesse crescer para os lados, deu um jeito de crescer para cima – e crescer muito, pois que havia sempre mais gente a ocupar espaços. Assim, seu horizonte era, como o de qualquer metrópole, recortado por edifícios de enormes proporções, cujas janelas, dado o reduzido espaço, olhavam irremediavelmente umas para as outras. De modo que iremos, arbitrária e irresponsavelmente, ignorar detalhes de pouca importância, como nome ou relevância política, econômica e cultural.

Tal grande cidade, a exemplo de todas as outras, era uma prova definitiva de que seis milhões de pessoas podem amontoar-se umas as outras, com maior ou menor grau de conforto, sem jamais sequer trocar olhares ou cumprimentos. Ali, havia, no geral, dois tipos de pessoas: as que almejavam a solidão e as que fugiam dela. Nenhum dos dois tipos jamais alcançava o que queria, pois que ninguém nunca estava só e, ao mesmo tempo, não encontrava companhia. Assim, viviam as contradições inerentes ao movimento da vida sem chegar a refletir detidamente sobre elas.

Esses pensamentos, e outros menos coerentes, zuniam pela mente mediana de mais uma mulher mediana da cidade grande. Sentava-se na sacada do apartamento que não era seu – mais uma sacada que olhava tristemente para outras sacadas e janelas do edifício vizinho, cujo dono os habitantes não conheciam. Cigarro entre os dedos, a mulher mediana olhava também.

Sendo justa, pensou que realmente havia algo para ver. Ali embaixo, uma garagem, mapeou ela. Subindo o olhar, podia ver as roupas íntimas de alguém que haviam sido postas a secar. Pensou que era irônico: jamais havia posto os olhos em quem quer que fosse o ocupante do segundo andar, segunda janela à esquerda do prédio vizinho, mas conhecia suas roupas íntimas. Femininas. De evidente bom gosto – o que quer que, naqueles tempos, isso significasse. A luz estava acesa, filtrava-se através da cortina. A mulher mediana torceu para que alguém metesse o rosto para fora, a fim de dar uma fisionomia àquelas calcinhas. Talvez, conhecendo o rosto daquela vizinha em específico, se sentisse menos invasiva por ver o insinuante fio dental lilás que aguardava alguma brisa na qual ondular. Nenhuma brisa soprou. A vizinha apagou a luz. Paciência.

O ocupante da segunda janela à esquerda, no terceiro andar, era mais um dos que disfarçavam a existência do monóxido de carbono enchendo de plantas o espaço diminuto de sua sacada. A mulher mediana se perguntou se as plantas estariam felizes em vasos de plástico. Não parecia que estivessem. Perguntou-se se o vizinho conseguia esquecer que respirava fumaça. Acreditou que ele fosse perfeitamente capaz, pois que temos todos uma tendência a ignorar o que é desagradável ou incômodo. Acendeu outro cigarro.

Os quadrados de luz das janelas vizinhas iam se apagando aos poucos, num balé ensaiado à exaustão todas as noites, há muitos anos. Ainda assim, a mulher mediana podia ver outras plantas em outras sacadas; naquela grande cidade, como em todas as outras, as pessoas gostavam de fingir para si mesmas que estavam em outro lugar qualquer.

Em sacadas demais para contar, entreviu bicicletas, que provavelmente exigiam algum esforço para serem metidas ali. A física era implacável, mesmo nas grandes cidades, e as sacadas eram sempre pequenas demais – nunca havia espaço bastante para a grande cidade se tornar maior. Perguntou-se com que frequência os vizinhos se dariam o trabalho de retirar as bicicletas e darem uma volta. Depois, riu da própria inocência: ali era a zona sul, e onde vivem os ricos é sempre de bom tom não emitir gases poluentes e praticar esportes.

A luz da última janela à direita, no penúltimo andar, apagou-se sobre uma bandeira do Botafogo pendurada orgulhosamente nas grades da sacada. A mulher mediana não pensou duas vezes sobre isso, já que seu time também vinha fazendo uma campanha vergonhosa no campeonato nacional. Seguiu procurando algo que ver.

Tardava, e havia cada vez menos luzes acesas agora, embora alguém ainda risse escandalosamente de alguma janela à direita. A mulher mediana gastou uns segundos a imaginar as razões. Depois, sentindo-se algum tipo ruim de voyeur, ignorou o som.

Um homem, um dos vizinhos que empilhava plantas, saiu à sacada. Trazia uma lata de cerveja, embora ainda fosse quinta-feira, e seus óculos refletiam a luz que vinha do apartamento da mulher mediana. Ela se lembrou vagamente de que ele a havia visto trocar de roupa uma vez. Sentindo certa identidade – ou intimidade, quem sabe – ela quase sorriu para ele. Então, notando o absurdo da situação, ignorou-o até que ele entrasse e fosse novamente seguro retomar suas observações.

Subiu os olhos. No penúltimo andar, alguém via televisão. Como as cortinas estavam fechadas, só podia notar isso porque a luz filtrada piscava e mudava de cor de tempos em tempos. Ou talvez o vizinho tivesse um globo espelhado – quem é que realmente sabe o que é provável e improvável numa cidade grande?

Olhou, então, ainda mais para cima. Era preciso esticar os olhos e deixar que o torso pendesse para frente para que conseguisse ver o último andar, uma vez que não queria se levantar. Pensou que era um exercício inútil, já que todas as luzes estavam apagadas. Mas como também já se haviam apagado todos os demais andares e não havia nada mais que ver, persistiu. Persistiu até que seu olhar pode discernir, com a pouca luz que ainda vinha da falha iluminação pública, alguém de pé na sacada ao centro do prédio. Outra mulher mediana. Parecia bastante grande, na verdade, mas todos são medianos em algum sentido, quando vivem numa cidade como aquela.

A mulher mediana franziu os olhos, tentando extrair algum sentido daquela companheira de divagações noturnas; alguma opinião arbitrária, como obtivera dos demais vizinhos apenas olhando suas sacadas. Não conseguiu.

Um músculo repuxou em sua nuca, pela posição incômoda, e, sentindo-se mais interessada do que era realmente necessário, a mulher mediana se levantou para olhar com mais atenção. Tampouco obteve assim um conforto muito maior, já que havia uma tela (muito responsável) de proteção ao longo de sua sacada. Notou, com alguma inveja, que a vizinha do último andar não tinha esse impedimento, e apoiava alegremente os cotovelos nas grades. Talvez fosse demais afirmar que o fazia alegremente, mas era evidente que estava melhor servida nos quesitos “descanso para a coluna” e “campo de visão”. A mulher mediana estava a ponto de se convencer a cortar a própria tela quando se lembrou de que não era dona do apartamento. Conteve-se.

Ajeitando-se o melhor que pode, a mulher mediana tornou a olhar na direção de sua companheira de mediocridades. Por sua vez, esta a encarava de volta, com um olhar que dizia “não sou medíocre” – se não com todas as letras, ao menos com toda a clareza. E complementou com um segundo olhar, um tantinho menos enfático, que afirmava “na verdade, estou até mesmo parando de fumar”. Contrariando a clareza da mensagem, em sua mão rutilava, vermelha, a pequena brasa de um cigarro aceso, parecendo mais vívida tendo a escuridão como pano de fundo. A mulher mediana quis lhe devolver um olhar que dissesse “posso ser medíocre, mas ao menos assumo meus vícios”, mas não sabia como. Na verdade, três segundos depois, ela percebeu que nem mesmo deveria saber; que, com toda a sinceridade, só poderia ter imaginado tais comentários aleatórios, já que, àquela distância, mal podia afirmar que aquela mulher (que não era medíocre, evidentemente) sequer a vira; e que seres humanos não se comunicam com olhares – ao menos não de forma tão específica. Estava prestes a virar as costas e entrar em casa quando se lembrou de que, ultimamente, seres humanos não tinham por hábito se comunicar de nenhuma forma. Com um “dane-se” sussurrado de forma bastante gentil, tornou a olhar para cima.

Numa tentativa, armou os olhos com o que esperava que fosse algo como “desculpe, você estava falando comigo?” e aguardou. A resposta veio cansada: “você está certa, é claro. Eu deveria parar de fingir coisas para mim mesma”. Aquilo a pegou de surpresa, mas, sendo meio nova nessa coisa de comunicação, achou perfeitamente possível ter transmitido a mensagem errada. Um pouco ansiosa para se sair bem, embora não entendesse a razão, a mulher mediana se esforçou para dizer ”na verdade, acho que não deveria me intrometer nos seus assuntos privados”.

Os olhos da mulher do outro lado riram um riso musical; a mulher mediana se esforçou para não perguntar como aquilo era possível. Ela sabia que não era. Com o riso ainda tilintando, a outra perguntou: “você é sempre assim tão formal?”. Com toda a sinceridade, a mulher mediana só pode responder: “não sei. Não dá pra ter certeza, quando se fala tão pouco com os vizinhos”. E acrescentou, um pouco tardiamente: “a propósito, todos aqueles que me chamam de alguma coisa, chamam-me de ‘moça’, com letra minúscula e tudo mais. Acho um tantinho grosseiro, mas deve fazer sentido. Pode me chamar assim. Estou acostumada”. Concluída a sentença, sentiu certo orgulho de si mesma. Era uma frase bastante longa para quem se limitava ao vazio “bom dia” do cotidiano.

“Moça... pessoas me chamam de muitas coisas. É meio difícil encontrar um padrão”, replicou a outra. “Nesse caso, decidi que precisava escolher um nome para mim mesma. Sol. O que te parece?”.

“Me parece um substantivo masculino”, respondeu a moça. Era assustadoramente fácil ser sincera quando não verbalizava nada.

“É o que todos sempre me dizem. Mas nesse caso é um nome próprio, não é? Não precisa fazer sentido”.

A moça deu de ombros, esperando, com isso, deixar claro que pouca coisa fazia sentido naqueles tempos. A começar por aquela conversa.

Franzindo os olhos, esforçou-se para definir melhor os contornos da mulher que queria ser Sol. Estava, aparentemente, imóvel. Talvez até mesmo fosse uma estátua, uma dessas horrendas peças decorativas com as quais as pessoas insistem em povoar seus lares, numa tentativa vã de lhes dar alguma cor.

“Eu sabia que deveria parar de tomar remédios sem receita”, pensou a moça, antes de virar as costas e entrar em casa, sem sequer se despedir. Já tivera o bastante de diálogos sem sentido com estátuas naquela noite.

Dormiu assim que sua cabeça tocou o travesseiro. Seus sonhos foram atravessados por manuais de como escrever bons diálogos – especialmente por aquelas passagens que aconselham a “observar como as pessoas falam em suas vidas cotidianas”.

Na manhã seguinte, saiu de casa sem sequer se lembrar de olhar pela janela para verificar se haveria alguma escultura de gosto duvidoso na sacada do último andar.