CEM ANOS NOVOS

Em 1986, alunos da segunda série, ouvíamos de uma professora substituta: “quando eu tiver cem anos, farei tal coisa...”. Dizia também somar 70 de idade. Ou seja, a professora da nossa escola estadual nasceu em 1916. Contei três décadas até chegar aos cem anos dela, sem esquecer por uma data sequer, e cá estamos: às portas de 2016.

Onde será que ela está? Mora por quais bandas? Circula por algum itinerário ainda? Será que continua viva?

Aos olhos inexperientes de quando se está na segunda série, parece um tanto próximo chegar aos cem anos para quem coleciona setenta. Aqueles cabelos de algodão que ela trazia pontualmente cortados denunciavam uma idade tão inalcançável quanto um futuro indesejado. “Sim, professora, quando você tiver cem anos eu já estarei acostumado ao reconhecimento e dará tempo para fazermos algo. Sim, serei inventor! Quem sabe não engendro algo para lhe estender a vida?”, foi o que minha cabeça possivelmente pensou, com outras palavras, enquanto eu ouvia uma das declarações de secularidade, encolhido na timidez atrás de uma mesinha de madeira escura.

Certamente foi a minha primeira relação responsável com o tempo: para quem tem oito anos, o que será daqui a trinta? Três décadas, e eu nem completei a primeira! Naquele tempo, via a imagem dos dons Pedro e fazia confusão: qual possui mais idade, o filho ou o pai? A imagem parada é a sombra que desejamos deixar ao mundo, pois as fotografias revelam a intenção, mas não nos lê a história. Lembro também dos familiares mais velhos – e quase todos eram bem mais velhos – dizerem, “no meu tempo...”. E tudo me parecia melhor no tempo dos tios do que na minha época. Viver era uma crítica à realidade: desde cedo.

Eu via a professora com respeito e assim sabia que o traria até 2016. E que ela saiba, perdurará até que o fim me alcance. Não acredito que chegarei aos cem anos, mas desde uma década percebo que trinta anos voam. Pouca coisa é dolorosamente tão fugaz como a possibilidade de sermos.

Não, não virei inventor, professora. E depois descobri, naturalmente, não existe a pessoa inventiva dos desenhos animados, com jaleco branco e o dia todo à espera de gritar eureca! E pior, professora: sei de gente, bastante, que até hoje acredita no tiozinho de jaleco ou que brinca de polícia e ladrão. Gente com idade igual à minha, gente que conhece o vapor de três décadas. Possivelmente, e é bem possível, atribuem ao ladrão que saiu da brincadeira, ou à ideia que escapou do jaleco, as frustrações colhidas em trinta anos. Sabe professora, respeito a todos de cabelos brancos, e mais: respeito por ser professora. Onde a senhora está? Com quem converso agora?

Nem me lembro do nome dela. Sei do que me lembro, e me recordo que a vi no Centro, por duas ou pouco mais oportunidades, uma delas com olhar cansado, um par de óculos pendurado na ponta do nariz e preso à cordinha enroscada no coque, abraçava diários de classe enquanto descia a Rua Dr. Quirino. Outra vez foram duas: primeiro ela subia a Rua Lusitana, depois nos encontramos no interior agitado das Lojas Americanas. Fiquei feliz em reconhecer vida na professora, pois ela vestia um conjunto preto de bolinhas brancas, apoiava ao ombro uma reluzente bolsa de couro marrom rajado, exalava perfume festivo. Parei propositalmente em sua frente, sorri. Ela me olhou e desolhou. Tão instintivo que nem nos surtiu efeito. Observava umas tinturas para cabelo, minha avó me segurava pela mão e sugeriu que saíssemos para o corredor dos chocolates. Eu recusei, percebi que a professora ameaçou dirigir-se às gôndolas de trás, arrastei a minha avó e lá antecipei a chegada. Novamente abri um sorriso. Ela me olhou por compaixão, sorriu, para mim e para a minha avó. Àquela época, as Americanas faziam misto quente com pão de forma e era o único misto quente feito no pão de forma que atraía fãs. Mas, dessa vez, nem o sanduíche sobressaiu, pois o perfume da professora até hoje ainda aparece em meus aromas afetivos. Quando ela já havia sumido na multidão, carregando uma caixinha de Revlon Tintura Castanho Claro, eu disse à minha avó, “ela era minha professora”. Minha avó foi professora por trinta anos! E logo pareceu desolada: “por que você não disse antes, eu a teria cumprimentado, ela é sua professora. Qual o nome dela?”. Celina, talvez. Respondi com a firmeza que até agora não tenho. "Como 'talvez', menino"? - reprovava-me a minha avó. "Ah, ela era substituta, Vó! Tivemos tantas..." - inventei uma saída.

Quanta coisa se vive em trinta anos, e tanto mais se deixa de viver. Quem de si de ser alguém, tão logo se tapeia: a vida exige coragem: dirá de antemão cumpadre meu, caso o tivesse, caso fosse meu. Não tive rosas. Em trinta anos se sonha tanto. E pode ser feita tanta coisa. Requerer uma aposentadoria. Esperar por netos! Dá para conhecer o mundo, dá para esquecer a primeira vez, conquistar diplomas, redigir capítulos, inspirar biografia. É possível colecionar das mais variadas antologias, financiar imóvel, refazer planos, cumprir pena máxima, viver recessão crescimento recessão crescimento recessão... E também podemos não fazer nada disso.

Dos setenta aos cem anos, o que é possível fazer?

Como eu queria poder voltar a 1986 e dividir com a professora a sensação de que trinta anos passam sem parcimônia, e poder agradecê-la por me apresentar ao tempo. Também provar, para a classe descrente e sarcástica perante os devaneios dela, que se chega aos cem anos quando se esquece de que cem anos se trata de tempo. E que o tempo é somente um código no qual nos prendemos e jamais soubemos como decifrar. A imagem de Dom Pedro, parada, ilustra aquilo que podemos ser quando não damos com o sonho combinado. Da professora substituta que ensinava tabuada, separação de sílabas e a sua versão do período imperial brasileiro, eu não guardei o nome, mas a fotografia de uma pessoa que passou por mim sem dar conta de quem eu fosse, e se emoldurou em minha memória pétrea.

Tanta coisa é possível fazer em trinta anos, trinta meses, trinta semanas, trinta dias, trinta horas.

Trinta vidas.

Mas ela é uma só. O resto talvez seja existir, se for. Tanta coisa é possível...

...Pena que deixemos isso sempre para o ano novo.

E todo ano é ano novo.

E a gente passa apenas por passar.

Que saudade de 1986!