O SANTO GRAAL
Há uns vinte anos, em função de um determinado motivo, resolvi escrever longo texto sobre expectativas de futuro. Era uma carta particular, confidencial, cuja data de abertura deixei claramente assinalada para exatos cinco anos depois. Foi uma espécie de “cápsula do tempo”, como a gente vê em alguns filmes norte-americanos. Tentei imaginar como estaria minha vida e dos parentes nesse lapso de tempo. Respeitei disciplinadamente a proposição e, decorrido o prazo quinquenal, rompi o lacre do envelope e degustei o texto. Fiquei admirado com três coisas: algumas situações previstas ou imaginadas, realizaram-se mesmo; a maioria, não, mas, sobretudo, percebi que 5 anos - um lustro - não é nada, não passa de um “vapt-vupt” na história da vida. É claro que a gente só se dá conta disto depois do tempo passado, mas nem poderia ser diferente. É impressionante como tudo muda e o quanto devemos estar preparados para novos horizontes. Muito pode ainda acontecer. Hoje, aos 70 anos, não me atreveria a repetir a experiência. Afinal, ao menos agora, parece-me o cúmulo do atrevimento tentar antever os 75 anos - idade que muitos amigos, no entanto, estão a desfrutar com a maior tranquilidade e energia. Vou deixar fluir, nada de querer adivinhar o que vem por aí, como tentei fazer em momentos mais alvissareiros, quer dizer, mais tenros, com boas perspectivas de longevidade. O importante é que aconteçam coisas proveitosas e estimulantes, não que sejam grandes feitos, mas que enriqueçam a vida pessoal e familiar. Creio que tive uma vida bem intensa e, portanto, não me sinto em débito com a família, com os amigos ou com as páginas de história que o destino me atribuiu. Vivi intensamente, fui até precoce em alguns feitos, nada a reclamar. Fiz, então, o que podia e, talvez, mais um pouco. Acredito que tenho um caminho a palmilhar, mas sem atropelos, com mais vagar e estilo. Para os herdeiros, a gente não deixa apenas alguns poucos bens materiais e morais, mas também "restos a pagar", quer dizer, um tanto de débitos históricos. É a plataforma dos septuagenários comuns, que não foram picados pela mosca azul do messianismo e que não sucumbiram ao mito do Santo Graal, quer dizer, da sanha da grandeza e do poder. Que venha o Futuro, mas, com modos. Como dizia minha avó Aldina Ghisoni de Matos, falecida aos 96 anos de idade: " que saudade dos meus oitenta anos!"