E agora, Danilo? (*)
Depois da extradição promovida pela Itália, Danilo voltou à rotina médica como psiquiatra do Hospital da Restauração das Faculdades Mentais, conhecido por HRF, com o M propositadamente omitido para facilitar a pronúncia.
O médico tratava dos esquizofrênicos com elevado espírito caritativo. Eram tantos os doentes mentais sob seus cuidados, que pouco tempo restava-lhe para dedicar-se a outra atividade. Relembrar o passado só lhe trazia sofrimento.
Três anos da deportação da Itália não o fizeram esquecer o amargo episódio. Nesse período, não visitou nenhum centro cultural ou artístico. Na cidade onde morava inexistiam atividades do gênero, nem mesmo uma simples mostra de arte itinerante para aplacar-lhe o desejo de contemplar o belo.
A única exposição que seus concidadãos conheciam era de gado leiteiro, patrocinada pela prefeitura. O prefeito do lugar tinha uma vaidade danada por seus exemplares de raça, puros-sangues, adquiridos nos maiores centros produtores do país e do exterior. O edil tornara-se rico durante sua efêmera passagem pela administração municipal.
A população do município divertia-se com shows de música sertaneja e com outros ritmos de imerecidos aplausos. A plebe aclamava com entusiasmo os conjuntos contratados pela edilidade. O esperto prefeito sabia que pão e circo eram excelentes antídotos contra a insatisfação popular.
Apesar de seu estado psicótico, Danilo não valorizava a mediocridade. Abstinha-se daqueles folguedos por considerá-los uma porta aberta para as drogas, estas, o mal que tornara alguns de seus pacientes hóspedes cativos do HRF.
Os elevadores do hospital funcionavam eventualmente. Vestidos em camisas de força, os enfermos eram conduzidos aos andares superiores por dois fortes enfermeiros. O pátio recreativo fora arborizado em passado distante, cujas árvores resistiram bravamente aos maus tratos de um jardineiro omisso. Uma piscina antiga, mal conservada, consistia no único lazer concedido aos internos.
Certa tarde, de uma janela do segundo andar, doutor Danilo olhava os pacientes dispersos no pátio. Alguns conversavam fazendo gestos demasiados, enquanto outros permaneciam deitados, sonolentos pelo efeito das drogas ministradas para acalmar-lhes os ânimos. Havia, ainda, senhores circunspectos, fazendo-se passar por alguma personalidade ilustre de antigamente. Um deles dizia ser Napoleão Bonaparte. Em hospitais psiquiátricos, existe sempre um Napoleão, um imperador que se julga mais culto, mais inteligente, superior aos demais.
Da janela, doutor Danilo viu um dos pacientes atirar-se à água para salvar um colega que parecia afogar-se. O interno nadou, retirou o companheiro, salvou-lhe a vida. O médico comoveu-se com o gesto do rapaz e desceu as escadas para cumprimentá-lo. Perguntado pelo homem que salvara, o paciente-herói respondeu:
– Doutor, ele estava muito molhado. Então, amarrei uma corda e pendurei-o pelo pescoço, ali, naquela árvore, para secar.
A rotina de trabalho de Danilo no HRF era exaustiva. O número de loucos crescia na mesma proporção do desleixo com a saúde pública praticada por certo país situado abaixo da linha do Equador. Não raro, o médico ouvia as reclamações dos pacientes:
– Doutor, não consigo comer mais de dezessete bananas. A última só entra quando a empurro com o dedo – disse o maluco, demonstrando repugnância, para, depois, fazer nova pergunta:
– O doutor já comeu banana com querosene? É ruim, né?
– ...
As crises psicóticas de Danilo haviam diminuído, cedendo lugar à depressão. Para amenizá-las, pensou em visitar os museus brasileiros. “Valeria a pena?” – perguntou-se sem muita empolgação.
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(*) Crônica adaptada de capítulo do livro Turista Impetuoso, de minha autoria.