Já Morri Uma Vez

Aos 17 anos, certa noite, depois de três longos meses de profunda agonia e solidão íntima, obcecado por pensamentos de que ia morrer e “confirmados” por inexplicáveis fatos sincrônicos, deitado na parte superior do beliche do quarto, compartilhado com meu irmão mais velho, estava eu.

De súbito, a respiração torna-se ofegante, quase não consigo respirar. Com esforço abro uma janela, à cabeceira da cama, em vão ... Não consigo respirar.

É agora, pensei. Não posso mais fugir.

Oprimido por estranhos pensamentos de morte, meu cérebro obcecado por eles, assustado e desesperado, desistiu de viver acuado.

Aquela obsessão era eu próprio, meu viver diário.

Passados aqueles meses de agonia e desespero, finalmente o derradeiro momento havia chegado.

Algo misterioso em mim, que não meus próprios pensamentos, resigna-se a entregar-se aos colos da mãe vida, da mãe morte.

Já não havia aonde ir, tão pouco onde esconder-me.

O medo, o pavor da morte, não era só meu, era mais que isso, algo atávico, um confronto direto entre o ser e o não ser.

Assaltava-me o imponderável ...

Ser alguém, estar no mundo, relacionar-se e interagir com os outros e com o ambiente, essa é a nossa vida.

Mas , quando uma “espada” misteriosa faz um corte na consciência, revelando o seu oposto, percebemos o fio tênue que separa a lucidez da inconsciência, a vida

Da morte, o ser do não ser.

A imensidão abarca todos os espaços-tempo, todas as formas e os recessos mais íntimos da criação, e é nela onde nossa vida flutua, conduzida pelas forças psíquicas que governam a maré biológica.

Assim, após essa entrega, fui encontrado pelas misteriosas águas sagradas do mar da vida, boiando na imensidão do oceano sem começo e nem fim.

Agora, livre do medo, meu corpo e psiquismo exausto e relaxado entrega-se às lágrimas serenas, pequenas gotas de orvalho que lentamente desciam pela minha face juvenil.

Essas gotas genuínas, minúsculas pérolas de pureza e inocência, fora tudo que jamais sonhara, seria o passaporte para o insondável mundo do silêncio perene.

No dia seguinte, eis que desperto.

Durou apenas uma noite. Mas foi o suficiente para transmutar a consciência, como um mergulho numa fonte límpida a tomar-me de surpresa e espanto: ainda estou aqui?

Não havia acontecido nada fisicamente.

Eu ainda existia .....

Mas algo substancial, significativo, mudara para sempre, a minha vida.

O ser encontrara o não ser, sua origem, contido na imensidão que tudo abarca, que é ao mesmo tempo forma e não forma, conteúdo e não conteúdo.

Torrentes de pensamentos, feito ondas frenéticas nascidas na praia, queriam adentrar ao mar de onde eu recém saíra.

O cérebro negou então, todas as forças opressoras do espírito, toda a contradição religiosa do gênero humano.

Já não havia mais deus nem diabo, salvação nem perdição, nenhuma fé onde apoiar-me.

Restava somente a imensa solidão uni abarcante, além das conjecturas e especulações do pensamento.

Uma compreensão muda, indefinível, havia se instalado no íntimo.

Pensamentos mil, nasciam e cresciam num relance, e feitos pássaros sem ninho voavam para longe, sem ter onde pousar. Talvez um dia retornassem ...

Nada era seguro, nada verdadeiro, nada sólido onde esses pássaros-pensamento poderiam assentar-se.

Todas as coisas, pensamentos, ideias e sentimentos as quais agarrara-me até aquele momento, se dissiparam, perderam o sentido.

Ao mesmo tempo que pairava uma incerteza em relação a minha vida a partir do ocorrido, um sentimento de leveza e desnudamento invadia-me a alma, instigando-me a buscar uma nova vida.

Eu, aquele jovem franzino, que tantas vezes antes questionava-me sobre o que é a verdade, tocara as praias do insondável oceano da vida.

A religião e a fé humana que eu aprendera, comigo morrera naquela noite. Um animal inteligente desperta, questionando tudo e desconfiando das instituições humanas.

O que essas instituições fizeram àquele jovem, o que fazem com os sêres humanos?

Eu nunca mais seria o mesmo, de real um ser vivente como tantos outros, prisioneiro da teia tecida pela própria espécie.

Adaptar-se?

Fazer o jogo?

Matar a vida?

Existe algo além do condicionamento cultural à ser apreendido e com o qual possamos viver?

Cinco anos se sucederam e ao longo desse tempo, uma profunda inquietude atormentava-me a alma.

Será que viver é só isso: comer, beber, dormir, trabalhar, divertir, tudo relacionado aos cinco sentidos?

Será que existe uma outra forma de ser, sentir, pensar, enfim de viver?

Essas indagações martelaram minha mente durante algum tempo, parecendo um arado revirando a terra, preparando o cérebro, para uma singela, misteriosa e futura descoberta, que culminou com com o texto O Despertar da Mente, publicado no Recanto.