Falta-me TEMPO para ser CULTO
A chuva estilhaçava a vidraça agressivamente. Pedia a todo custo, passagem para apreciar de perto e confortavelmente o som que vorazmente invadia os ambientes da casa. A reunião contava com assuntos de Literatura, Filosofia, Política, Teatro, Pintura, História, Turismo e obviamente, Música.
Num dia frio, de nuvens carrancudas; céu fechado, sério e de poucos sorrisos; como de costume, um grupo de amigos reuniu-se para falar de coisas que move o mundo. À cada palavra, à cada opinião, à cada discurso proferido o Planeta mudava de lugar. Parecia a catarse intrínseca aos humanos, indo ao encontro dos alentos e desalentos da vida. Ao seu modo, cada participante libertava-se das cangalhas psíquicas, as quais vieram habitar este espaço terreno.
Como a lareira, as porções de foundie de chocolate e a discussão em pauta não eram suficientes para aquecê-los, acrescentaram queijo ao foundie e regaram a reunião com o mais puro e envelhecido vinho do Porto; porém, embora os papos tenham subido o volume e intensidade nos relatos, nada de pôr fim ao frio intenso invernal. Faltava alguma coisa: o bom, velho e empoeirado Rock and Roll triunfante nas caixas; afinal, se a etérea Natureza faz a parte dela e alivia, Deus e o rock salvam.
Chamaram para fazer parte da sessão cultural a banda Morphine. A chuva intensificou as batidas contra as vidraças. Curiosamente, ninguém conhecia o trabalho da banda. Grata surpresa para todos. Silenciosamente os integrantes chegaram ao palco. Sem maiores delongas ou apresentações, abriram o concerto com o álbum que acabaram de lançar em territórios além-mar, estava ainda em chamas e não havia águas e chuvas intensas que combatessem o incêndio.
O Sax foi o primeiro a dar ao concerto o ar de mistério e o real significado do insignificante. Iniciou plácido e aos poucos, gradativamente, foi adquirindo estridente sonoridade nas caixas, intrínseco e desencarnado de notas. Implacável! Lembrava e muito, o sax soprado pelo senhor de olhos tortos e arraigado na arte de soprar, do saxofonista do Van der Graaf Generator. Nome dado em Homenagem ao Físico Van der Graaf, que por erro e mera distração, o gerador veio parar no museu de Física da USP. Atualmente, totalmente inócuo.
O Sax abaixou a voz. O Baixo para não sentir-se pequeno e diminuído, chamou para si a visceralidade sonora. Contrário do Sax, o Baixo entrou agressivo e causando furor. Harmonicamente, fazia um duo impressionante com a guitarra. Sensivelmente tocado com dois dedos, fazia resplandecer uma aura estranha e de incondicional transcendência em todo o ambiente. Perfume de incenso. Alarido de vozes. Um Baixo alardeador e oportuno. Recatado de princípios: diminuiu a intensidade.
A Guitarra, mestra dos gemidos invernais, solicitou a participação de todos integrantes ao mesmo tempo. A Bateria fundia-se entre metais e gotas de águas estilhaçadas nas vidraças. Certo experimentalismo e espetáculo magistral para uma única, sombria e cultural garagem. Morphine, para aumentar o frenesi dos participantes e diminuir a sensação térmica interna, trouxe à tona uma mescla de The Door´s e Nirvana; fazendo reinar sobre o ambiente musicalizado os caminhos da plenitude, do etéreo e perdições entorpecentes. Doses e mais doses de vinho. Foundies de queijo e chocolate aos montões.
“Algum dia existirá a cura para a dor. E neste dia eu jogarei meus remédios fora. Quando eles acharem a cura para a dor. Onde está a caverna. Para onde foi a sábia mulher”
Dilacerado e com a voz rouca/contraltada, parecida com a voz do Iggy pop, esta foi a pergunta que o vocalista e baixista, Mark Sandman fez aos presentes. Sem respostas, respondeu: “deixe que eu responda por vocês. Antes, gostaria que soubessem que o nome da banda não é, e jamais será alusão, apologia à morfina”.
E com o sonho de que cada canceroso alivie suas dores com a morfina cabível ao seu câncer, entrou em cena. Sua voz flutuava em meio ao insalubre, questões e perguntas jamais resolvidas e respondidas. Foi o ultimo a assumir o posto e o ultimo a sair do palco; sobretudo, no dia 3 de julho de 1999, na Itália, dois dias depois de um concerto na antiga Praça Sony, no Parque das Nações, faleceu fazendo o que mais gostava: de cantar e alegrar reuniões em dias invernais e chuvosos.
“Qual é o título do álbum; o qual acabo de flutuar em suas asas sonoras”? Cure For Pain – Morphine 1993.
Completavam a banda: o saxofonista Dana Colley; o baterista Billy Conway e os estilhaços de chuva nas vidraças.
Findada a reunião daquele pessoal que ainda nutria profundo respeito e degustação por aquilo que entendiam como sendo excelente; porque, para eles, o bom está escasso. Quando muito, raro é atingirem o estágio do razoável. A poeira soturna do tempo cobre qualquer sentimento de realização no firmamento; também chamado de inspiração pelos poetas da desigualdade. O dinheiro é o ácido que, contrário à chuva, corrói as inteligências dos sábios; portanto, eximindo-os, tragando-os de tempo suficiente para ser cultos.
A lisergia sonora é o ácido para os dias chuvosos e tempos, infelizmente, desalentadores e sombrios; contudo, só a Antropofagia, as Chuvas intensas, o Rock and Roll, o Foundie e o cerne Cultural nos une socialmente, familiarmente, politicamente, filosoficamente, artisticamente, musicalmente e requer o ócio do tempo para a discussão.
Crônica que será ampliada e postada com fotos no site da Obvious, para o qual escrevo. Ministerio das letras é o blog. Confira.