Uma MIRAGEM chamada VAZIO

JP havia se divorciado fazia dois anos e devido a desilusão com o romance mal sucedido, não quisera mais se envolver em relacionamento algum. Conceito matrimonial este que recebera como legado dos pais, os quais ficaram casados por mais de 50 anos. Imaginava que se a dádiva harmoniosa e pacífica acontecera com os seus pais, poderia ele também banhar-se nas águas do lago das realizações matrimoniais; o que de veras não lhe ocorreu.

Conformava-se com a ideia de que tudo com o tempo evolui e o seu casamento foi uma imperiosa fonte de estagnação e mesmice; por isto, o fim. Planos feitos a dois podem ou não ser duradouros; afinal, em tempos repletos de mutação, a efemeridade contrapõe ao duradouro. Consolava-se com esta versão.

Beirando meio século de existência, JP mantinha praticamente intacta a rotina de vida que levava quando casado; de levantar cedo, ajustar o nó da gravata no pescoço; acertar o impecável paletó no corpo; calçar os lustrados sapatos; tomar um lauto café; deixar na pia do banheiro o mau humor e ir à luta. Trânsito descomunal. Inalar tufos de fumaça dos escapes de carros e motos. E após ouvir o buzinaço de motoristas e ambulâncias, abrir gavetas e mais gavetas, retirar os processos, abaixar os óculos para ler o chumaço de páginas, botá-las debaixo do braço e abrir os passos em direção ao fórum.

Tendo que trabalhar em causa própria, ele mesmo fizera a documentação do divórcio que pôs fim ao sonho que, circundado por testemunhas, amigos e familiares, um dia jurou para si, a ex-esposa e o padre. “Amar-te-ei, senão até o fim dos tempos, por toda a minha vida”. Abençoado pelo pároco, colocou a aliança na mão daquela que não está mais em seu poder. Nem toda jura se cumpre; mas parece que a de amor é a menos “cumprível”; afinal, envolve emoções, entendimento, parceria e o mais temível: a rotina e a traição do tempo.

Estas são inexoráveis com os planos elaborados, despersonifica o homem e mais cedo ou mais tarde a máscara da realidade despenca do prego e aclara a visão dos traídos ou traidores. Nenhuma santa fica inerte no altar a vida toda sem uma hora denunciar o larápio que às furtivas lhe rouba os donativos. Santos são como a Justiça: cego, surdo e mudo, mas nem tanto; afinal de vez em quando olham por debaixo dos óculos escuros. Nem sempre enxergam aquilo que gostariam; todavia, mesmo assombrados, olham.

Inversamente ao casamento, a tecnologia chegara para ficar; o que facilitou consideravelmente sua rotina de trabalho. Os processos eram lançados no PC, minuciosamente estudados e de lá, imprimidos para debutar a defesa ou acusação nas audiências. A máquina sempre foi uma ferramenta de grande valia para o homem, porém, nesses casos tornam-se mais necessárias e utilitárias. JP regozijava com essa nova modalidade de instrumento. Investia mais e mais em informatização e o escritório adquiria mais clientes por dia, do que o piscar dos olhos.

Com a rotina de trabalho facilitada, nos últimos anos tira uns minutos do dia para vadiar pela malha grossa virtual e a mais procurada é a do bate papo. Apresentou-se, assinou o nick, está conectado com os amores ocultos. Rapidamente, após algumas investidas, ele descobriu que a virtualidade é promissora para quem quer o anonimato. “Expor demais é tolice, enrustido deve ser melhor”.

Conhecimentos virtuais não faltavam. Cada dia uma prosa nova fazia estremecer suas estruturas emocionais. Nem o mais galanteador dos deuses das palavras e seduções superava as conquistas que lhe apresentavam em cada bater de tecla. Misteriosas e encantadoras mulheres abriam-lhe as portas para novos amores. Embora o ambiente fosse frio e desprovido de sutilezas emocionais aparentes, algo de sublime e fantasioso fazia-lhe aguçar os hormônios. JP é um homem frágil de sentimentos, a ponto de pensar que existem mulheres merecedoras de flores, bem como tratá-la como dama abrindo a porta do carro.

Para ele, os finos tratos a uma dama refletem em prazer a dois e em se tratando de mulher, no somatório, deveria prevalecer o sexo considerado frágil sobrepondo a rudeza masculina. JP possuía os dotes de homem prendado e sensível citado pelos poetas em seus escritos; sumidade masculina que as mulheres adoram e paulatinamente suspiram-lhes a tristeza no coração, quando sentem-se obrigadas a dizer “que homens nesses moldes não existem mais. Foi-se um tempo”.

De tecla em tecla, o amor ia batendo-lhe o coração. Compassado, sonolento, acelerado. As aparências físicas são fortes e resistentes; mas naturalmente o coração é musculo frágil e basta chegar o instante certo para pulsar em ritmo frenético e neste instante, necessita de moradia e aconchego. Abrigo! Esta arritmia e vulnerabilidade sentimental de JP era o contraponto da falácia coletiva de dizerem que coração é território que embarcação nenhuma aporta; pois o seu estava aberto para outra atracagem.

Ficara o tempo que ficara no isolamento refazendo das cicatrizes no casco do navio, tempo suficiente para arquitetar a solidez do novo cais e certamente não será inaugurado com a denominação de Porto Solidão. O ajuntamento das águas estuárias; o silêncio do quarto à meia luz e o tec-tec das teclas do PC denunciavam as fantasias; fazendo com que o solteirão sorrisse por dentro.

Distante de onde estava em aproximadamente 3 mil quilômetros algo conspira a seu favor. Com hora marcada, todas as noites, apossava das mais sublimes palavras e lançava-as no teclado; aquilo chegava aos olhos de alguém misterioso como se estivesse na presença do mais tenro sonhador do planeta. Para tanto, JP tornou-se ávido por poesias, com predileção por Carlos Drummond de Andrade; e advindas dele, surgiu a docilidade frasal e o encantamento de enredar céu, estrelas e luar em forma de versos. Tanto ele como a Sra Desconhecida estavam embebedados pelo mais nobre elixir do amor faceiro; fato que os unia através das divagações. Cada imaginação, uma insidiosa forma de se amar. Seus corações, sem flamejar, inflavam dentro do peito; principalmente ele pela oportunidade de conhecer uma moça de 25 anos mais nova.

Sempre lisonjeava-a com a frase: “Doce e tenra flor de carmim, que desabrocha o mais puro e avariado amor, em mim. Na Terra, no céu, no fogo, no ar. Hoje, amanhã e todo o sempre, hei de te amar! – esfuziantemente sorridente, finalizava: “Se quiseres, iremos em Marte”.

Passado as núpcias virtuais, os dois iniciaram a montagem dos estratagemas para o solicitado e requerido encontro. Ela a criatura do deus JP, como a tratava, dizia que teriam que ser criativos, pois como era menor de idade e moradora numa cidade pequena, qualquer rumor poria por terra os planos elaborados; deixando para ele essa missão de montar os meios e a forma de fuga. Que por sua vez, mesmo não sendo expert nessa questão de rapto à luz do luar, ficou de estudar os casos bem sucedidos acontecidos na história e juntos traçar os planos. Para causar furor e frisson, sempre que discutiam dizia para sua amada que “rapto que se rapta só, é rapto que rapta só; mas rapto que rapta em dupla é rapto formalizado e certamente bem sucedido!”

Como naquelas alturas o enlace das teclas eram apenas mensageiras das emoções, a formalidade, a cordialidade e a intempestiva vontade de unir lábios com lábios; corpos com corpos e saciar o apetite da carne tornam-se frequentes nas conversas. Miragens completamente apaixonadas e apaixonantes. A magia, o lirismo e o encanto daquilo que é belo e desconhecido é algo sui generis. Fala, retrata a si e por si.

Alguns detalhes econômicos teriam que ser ajustados, mas nada que fosse entrave. A Desconhecida confidenciou-lhe que seus pais eram possuidores de pequenos latifúndios nas cercanias onde morava. Revelou ainda que disponibilizaria para ele uma das sedes de campo, com lareira, piscina, sauna e churrasqueira. O caseiro ficaria à disposição para levá-lo para cavalgadas no entorno, onde podia desfrutar do puro ar, conhecer as belezas naturais, visitar a antiga usina hidrelétrica que em outros tempos produzira energia para as comunidades de colonos e ao local onde brotou toda àquela riqueza, que é a mina batizada com o nome de “Fonte da nobreza”; atualmente desativada, mas que guarda riquezas infindas e inexploradas.

Para tranquiliza-lo, disporia de um automóvel com motorista para busca-lo no aeroporto e de lá, seguiriam direto para a estância onde iria ficar. Como era menor de idade, já havia comunicado seus pais sobre o acontecimento e que no domingo seguinte à sua chegada, confraternizariam o encontro com a família reunida. Para o evento, chamariam uma banda de música da cidade; serviriam churrasco de um garrote em tenra idade; tonéis de vinho e barri e mais barris de chopp; pois praticamente por toda a cidade impera o sobrenome da família.

Por fim, além da intensa saudade e ansiedade de estar ao seu lado, custearia todas as despesas, incluindo a volta. “Meu amor venha logo! Saiba que somente descrever o que sinto, torna os dias e as noites, terrivelmente longas. Aproxime-se de mim e faça com que eles encurtem. Venha com as páginas do livro do coração em branco; por que serei eu a poetisa a lhe descrever o amor primeiro, definitivo e único. Saudações: a Desconhecida”.

Voucher comprado. Viagem definida. JP criou asas na decolagem do pássaro de prata. Conforme boatos, ele chegou ao destino e até o finalizar desta crônica, os bancos das praças e a mochila serviam-lhe de consolo: o banco servindo de cama e a mochila de travesseiro.

O desolado JP, quando o céu o iluminava, contava estrelas e lamentava à lua o ocorrido e às vezes, correndo pelas ruas desvairadamente e quando indagado por que corria sem rumo, respondia que estava tentando a todo custo alcançar o vento e assim, retornar ao seu torrão; lugar que não devia ter saído. Em certos casos, aventuras tornam-se miragens e como castelos de areia, desfeitos facilmente pelas ilusões, fantasias e sonhos.

JP era produzido pela fusão do vácuo e do nada. Um homem tentando se encontrar, induz, deixa-se levar por aquilo que também não existe; unindo o nada à coisa alguma.

O vazio e o oco se comunicam, se perpetuam, se entendem, chegam inclusive, como cipó se enrosca arraigadamente no tronco da árvore, a se enlaçarem; mas nunca, jamais se amam: quando menos se espera, separam, aparece um invasor para torar, cortar aquele que for o mais frágil, na frágil relação. Pondo fim ao que não começou; mesmo por que amor nivelado pelas ideias, somente para Platão, seu idealizador. O universo humano, com seus amores efêmeros e líquidos, está em constante movimento. Move-se à procura dos vendedores de carnes libidinosas, desossadas, desajustadas e desiludidas; no entanto, encontram-se apenas ossos lamentosos.

Se soubesse que o mel é doce por causa da displicência e a mais tenra inobservância do fel, JP teria se saído melhor em sua investida. Por vezes, o amor é a conjugação do verbo amar do amargo mar de amargura! Quando a receita de amor leva pitadas de fel, nem tudo se permite. Engana-se quem pensa que a doce sacarose do fel é o contrário do mais puro amargor do mel; por vezes, mais necessário aos sentimentos e emoções que o saboreável adocicado do próprio mel. Se existem, é para ser provados.

Numa das noites, daquelas permeadas por muitos pesadelos, JP si perguntou: "Uma miragem chamada Vazio; ou chamada Ilusão; ou ainda, chamada Mulher"? E puxou o travesseiro debaixo da cabeça em chamas, tentando dormir...