MORRER DE SOLIDÃO

Aquele menino de quase dois metros de altura era só um menino. É certo que de quase dois metros, mas apenas isso e ponto final. Corpo de marmanjo, porém idade, cabeça e alma de menino.Tonico foi, na verdade, obrigado a viver como adulto muito cedo. Resgatado de um orfanato, ainda quase de colo, era extremamente amado pela mãe adotiva... ela cuidou de suas inúmeras feridas, de seus problemas psíquicos, e deu-lhe tudo de que precisava: carinho, proteção, casa, comida, escola. O entretanto em tudo isso era o silêncio do pai adotivo. Silêncio resignado de quem tolerava; não compartilhava do amor da esposa por Tonico.O menino estava com nove anos quando a mãe morreu. O pai morreu para ele: deu-se à bebedeira e mais tarde refez a vida, teve filho legítimo. A nova esposa não quis Tonico (ele já tinha doze anos!), que adquirira rebeldia própria da idade e incentivada pelo abandono afetivo de que era vítima fazia tempo.Começou a via-crúcis do infeliz: uns tempos na casa do padrinho. Outros na do tio, dos avós e de outros familiares... mas eram todos postiços! Tonico não tinha família “de sangue””. Ninguém era obrigado, em tese, a conviver com um homenzarrão daquele, por mais trabalhador que fosse (e o garoto era), pois todos tinham filhas, compromissos demais, ou não tinham ninguém para vigiá-lo quando precisassem se ausentar. “Eu, hein... do jeito que os jornais falam de coisas ruins nesses casos...”O pai se esquivando. Queria que todos ajudassem ao filho imposto. Sua forma de ajudá-lo era caçar alguém que assim o fizesse por ele. Um dia, quando Tonico atravessava os dezesseis anos, veio a grande tacada paterna. Estabeleceu um consenso entre os muitos entes queridos adotivos: o “pupilo” estava com dezesseis anos (dezesseis!). Ganhava seu “dinheirinho” com biscates e, com uma “ajudinha” de todos podia alugar uma quitinete, comprar umas “coisinhas” e se virar sozinho. “Já viram o tamanho dele? Tem quase dois metros e pode muito bem cuidar de si”.Numa noite chuvosa de natal, Tonico foi assassinado próximo a um boteco onde fizera “muitos amigos” e disfarçava o vazio interior entre rodadas de cerveja. Nem completara dezessete anos e todos o conheciam como homem feito, “cabeça feita”, o que não era real. Tratava-se apenas de um fedelho em busca de aconchego, identidade e afirmação... de gente à qual pudesse chamar de sua.A consciência do pai, em busca de alívio, fez várias suposições e teve o apoio de outras consciências: Tonico pode ter se envolvido com más companhias... talvez tenha mexido com mulher dos outros... talvez até andasse “metido em drogas”. Ninguém jamais pressionou a polícia nem investigou a seu modo. “Nada vai trazê-lo de volta, né? Deixa isso pra lá, entrega pra Deus.” A vida voltou à rotina e, de certa forma, muita gente ficou mais leve; mais calma; “mais aliviada”.Jamais alguém perguntou minha opinião sobre o que teria levado aquele menino a um fim tão trágico. Ainda bem. Jamais seria entendido se dissesse que, seja lá o que for que aconteceu, Tonico morreu de solidão.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 16/06/2007
Código do texto: T529033
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.