Quando foi a última vez que você parou para OUVIR o seu PAI?

Sim, ouvi rumores que você esteve no exterior; passou as férias ao lado dos amigos nas melhores praias Brasileiras; formou-se na melhor universidade do país; adquiriu o carro que queria; pegaram você e mais alguns, bebendo, cheirando e fudendo a melhor amiga de sua noiva debaixo dos arvoredos à luz do luar. Parabéns! Bacanal junto e misturado, iguaria excelente que alimenta três ou mais, com o mais puro bacalhau. Normal!

Conquistas meritórias para quem realmente é merecedor. Você sempre foi exemplo aqui no condomínio, embora visto por olhos insensatos. Indiscutivelmente, mero engano desse povo! Falam demais. O que é uma trepada despropositada; uma cachimbada na mais pura erva; trepadas sob o brilho estelar para um jovem robusto, galanteador e inteligente, como você?

Desde cedo você se mostrou familiar, exemplar dentro e fora de casa. Alguém que rema contra a maré; pois enquanto todos de sua idade estavam preocupados em fazer da vida um segundo e nada mais, você enfrentava as adversidades insanamente, tendo os livros como a principal defesa. Agora que tem todo o tempo em suas mãos, tem mais é que desfrutar ferozmente das vicissitudes e fantasias que não realizou em época devida.

Paulatinamente, foste elogiado pelos seus pais; afinal filho como você não se produz em qualquer linha de produção. Por falar em pai, faz algum tempo que não o vejo caminhando pelos arredores dos prédios. Aconteceu alguma coisa com ele? Era ele aparecer, que o sol acompanhava-o para irradiá-lo com fachos de luzes.

Assim que via os amigos, o brilho de seus dentes alvos pediam licença para os lábios vermelhos e frágeis e aproximavam dos condôminos, para cordialmente, sorrir cumprimentando-nos e papear o cotidiano. Sem medo de errar, eu e ele somos os mais veteranos deste lugar. Acredito que esse condomínio seja a nossa segunda casa. Nascemos e para cá mudamos e aqui estamos até hoje. O que você tem a me dizer sobre o seu paradeiro? Do nada ele sumiu!

Outra passagem interessante de seu pai era o sair de madrugada com o embornal ensebado de lado e dentro dele, a marmita fria matutina. Dava lá pelas 7 horas da noite, tocava ele apontar lá embaixo e devagar como o cair de uma pena sob a interferência do vento, vinha dançando o ziguezague ladeira acima. De mansinho chegava, você vinha pegar o embornal e ele parava para a resenha do soprar palavras ao vento. Todo o santo dia era assim: sair cedo; voltar à boca da noite e gentilmente saudar os amigos. Foram 35 anos até aposentar as ferramentas; porém, não aposentou os bons hábitos. Por onde ele anda?

Você era piralho, lembro-me como se fosse agora falando, enquanto agente falava, você corria e enfia-se dentro de suas pernas. E ele como um animal que defende com unhas e dentes o filhote do ataque inimigo, afagava-o intensamente. O chumaço de cabelo arrepiado era docilmente penteado. Fazia isso naturalmente no meio de todos aqui no condomínio. Você ficava mansinho; no entanto, quando o embaraço dos fios doía-lhe o couro e o grito era instantâneo, imediatamente cessava a sessão e puxava do bolso os pirulitos, os quais o engabelava. Com você sorrindo e pedindo mais um, ele continuava o desembaraço dos fios. Seu pai sabia de cor as pedras de como ser amável e dócil com todos.

Para mim, o sumiço de seu pai é no mínimo estranho. Contudo, espero que esteja bem e que volte logo a nos fazer sorrir de felicidade; pois pessoas como ele não tem mais espaço nos dias de hoje, mesmo porque os tempos mudaram. Por favor, ao vê-lo diga o que conversamos e o quanto ele é lembrado e faz falta neste condomínio.

Nossa amizade não se fez de um segundo ao outro, por isto nada efêmera. Como o manancial necessita das chuvas para mantê-lo com a mínima vazão requerida; como a flor que mirra sob sol intenso e seca absoluta, eu sinto a falta dele transpondo a insipidez das falas de tardes e noites sem sabor e mal cheirosas. Nossa amizade foi semelhante o sim e o não das moléculas atómicas: indivisível e ao mesmo tempo, dizível.

Por fim meu querido, você é excelente menino e filho; exemplo a ser seguido, mas nunca, jamais será o que ele foi: sensato; honesto; humilde; ponderado de ideias; sincero; formato simples e formidável interiormente. Continue assim que você vai longe. Tenho a lhe dizer que não se faz pais e filhos como antigamente! Foi-se a época dos saudosistas e nostálgicos. Imaginando ser ele: desculpe-me a sinceridade!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 21/06/2015
Reeditado em 24/06/2015
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