ISCAS de UNHAS
Os bicos dos sapatos chutavam levemente os calcanhares do vizinho, que feito cobra rastejante cobriam muitos metros. O vozerio do “bate-boca” atropelava quem se propunha papear algo mais polido. Os assuntos giravam em torno da hipocrisia familiar, adorações a animais domésticos, rebeldia ou exemplos de filhos e projetos que em sua essência, provavelmente, jamais seriam postos em prática. Poder de decisão para os enfileirados é atributo que está fora de cogitação e para aqueles que tentam burlar está teoria, sentem-se importunados e acovardar é mais sublime do que tentar atravessar a faixa de Gaza, que é superar as adversidades que batem à porta.
Óbvio que o passeio pela praia dos aparentados e fila de cinema, ocasião em que a descontração é maior que qualquer forca, não é para lamuriar o que os semblantes não conseguem esconder e se o fazem, é por hora porque não demoraria e todos voltariam à rotina de vida. Assim como as “Iscas de unhas”, filme que aguardavam ansiosos para a liberação da bilheteria e entrada, o cotidiano não perdoa os amparados e desamparados.
A fila havia aumentado mais alguns metros, quando chegou uma atabalhoada e esbaforida adolescente. Na mão trazia o celular, que depois de teclar os números, lançou-o não orelha. “Estou aqui e você ainda não chegou? Venha rápido, faltam dez minutos”. Devia ter usado o tempo como subterfúgio, porque ainda restavam uns bons minutos para o tocar da sirene, anunciando a entrada, que comumente acontece dez minutos antes do início da sessão.
Desligou-o e para mantê-la aquecida, teclou novamente e levou-o à mesma orelha. Falou mais um sem número de frases e desligou, botando-o no bolso traseiro da calça jeans rota, a qual estava com grandes furos, mostrando os nacos das volumosas coxas e bunda. O vermelho ofuscante do batom já esfacelava em seus lábios, deixando transparecer as falhas do cinza-claro contrastando com o borrão da pasta química. Atacada por uma acesso de cólera momentâneo, rangia os dentes, como faz o porco do mato pra sinalizar e chamar atenção nas trilhas por qual passa.
Fora as tatuagens extravagantes, os metais completavam os adornos que tomavam seu corpo de cabo a rabo. Uma cobra gigante descia pelos seios e nuançava o entendimento que entrava pelas entranhas, saindo no lado oposto. Dentre todas, devia ser a maior e a mais espalhafatosa. Seus dentes também eram vorazes e selvagens. Estranhamente, o pedaço da serpente que aparecia desenhado nas costas, estava úmido e com pingos grossos e gosmentos em queda livre. Saindo para comprar pipoca, expôs a arte diabólica, fato que intrigou uma senhora que imediatamente benzeu-se, fazendo o sinal da cruz. “Cruz credo. Só Jesus na causa”.
Sua cabeleira multicolorida era cortada de forma desigual, de modo que de um lado era totalmente raspado mostrando o branco do couro cabeludo e do outro, um chumaço de cabelo formava um ninho arredondado e fofo. Longas e ensebadas tranças rastafári alongavam-os até as costas. Vez para outras, alternadamente, levava os dedos à boca. Mastigava, salivava algo e cuspia logo em seguida.
Ao ver a pessoa para quem ligou chegar, abriu os braços e esperou ser enlaçada. “Meu amor por que demorou tanto? Deixei você em sua casa e fui para a minha, morrendo de saudades”!
- Amor demais não mata. – sorrindo, colaram os lábios.
Ficaram assim por certo tempo e após os corpos trocarem calor, formalizaram o êxtase do encontro com ósculos e mais ósculos. Cena típica de amantes em fase de lua de mel; pois como criança quando ganha um novo brinquedo, eram inebriados pelo aconchego de estarem lado a lado. Incrédula, a mesma senhora repetiu o que havia dito: “Só Jesus na causa” e apressou-se em entregar o bilhete de entrada.
O casal queimou os últimos minutos antes da chamada derradeira para o inicio da sessão. Quando caminhavam para a roleta, um senhor chegou apressado. Gentilmente, elas cederam a passagem, dizendo: “Por favor, passe em nossa frente”.
O senhor estacou de repente. Elas nada entenderam. Ratificaram o que disseram anteriormente, ouvindo do senhor: “Agradeço a gentileza. Vim aqui somente para saber qual é a receita da iguaria: “Iscas de unhas”. As adolescentes olharam-se mutuamente, mordiscaram as unhas, fecharam os lábios num “O” incrédulo e retrucaram em uníssono: “Iscas de unhas é o nome do filme. Pelo que lemos na sinopse, não se trata de comida; achamos que é sobre terror. O protagonista mata por enforcamento as vítimas, descamam-lhes a pele e com um alicate, arrancam-lhes as unhas, comendo-as ensopadas. Filme bem recomendado pela crítica”.
O senhor levou os dedos à boca, lascando em pedaços miúdos as unhas. O pouco que havia estava aterrada à carne. Com os dedos faiscando sangue, disse: “Que pena! Fui enganado pela manicure, que falou-me que a receita era de como fazer e saborear Iscas de unhas dos outros, sem no entanto, danificar as minhas. Perdi meu tempo vindo aqui. Obrigado pelos esclarecimentos”.
- Por nada! Querer saber de receita de Gastronomia em sala de cinema é Foda com ph! Só Jesus na causa.
Gargalhando meio pasmas, com um dos dedos à boca, lascando fagulhas de unhas divididos aos ósculos, comentaram entre elas.