ADIOS zapatos y TRABAJO
Viva atado aos bons princípios e legados dos Libertários e Inteligentes e livre-se dos cadarços, correntes e amores aniquiladores e padronizados. Liberdade é tudo!
Em razão deste sentimento misântropo, para alívio de todos, a crise econômica solucionou aquilo que se arrastava por anos a fio e por mera distração da zona de conforto, se perpetuaria por tempo indeterminado.
Leny chegou estafada por mais um dia. E sem fazer nenhuma parada, dirigiu-se direto ao quarto. Abriu a janela para respirar um ar menos sofrível e mais liberto, sentou-se na casa, tirou os sapatos amarrotados e mal cheirosos. Delicadamente posicionou-os e com um pontapé surdo-mudo guardou-os debaixo da cama. Sentia-se aliviada por saber que pôr quarenta e oito horas eles não fariam parte de suas manhãs.
Os sapatos, por sua vez, pensaram o mesmo; pois são cinco anos acompanhando-a sob chutes, pontapés, estocadas em ponta de pedras, enfiados em poças de água e quando amados, postos delicadamente debaixo da cama. Um deles fora colados várias vezes; enquanto que o outro, não tendo como reparar o solado original, perdeu a originalidade, levando junto o amigo. Passa hoje vem amanhã, ambos passavam dias no leito das prateleiras de sapatarias. Todavia, resistentes e resignados, ao chegar às 6 horas da manhã da segunda feira até o entardecer da sexta, suportavam os desaforos daquela senhora. "Fizemos a coisa certa em nos vender para esta senhora? Como saber se há outra pior, se é à ela que pertencemos"?
Leny arrancou as vestes do corpo, amaçarocou-as nas mãos e lançou-as bem longe de suas vistas. Aquele dia não parecia dos melhores, embora que ações como aquelas eram o ritual do cotidiano dela. Vasculhando a fundo as passagens daquela senhora, podia verificar que seu mal humor era proveniente do trabalho; pois trabalhar para ela nada mais era que tremenda desilusão de ser humano perdido em ambientes amorfos. Sem levar em conta o ambiente, não entendia como existem pessoas que fazem do trabalho os meios e as formas de lazer e não da obrigatoriedade. Se dependesse dela e sempre divulgava a teoria que trabalho devia ser somente para angariar recursos financeiros para sobreviver, nada mais.
Nem preocupou-se em banhar e espojou o corpo sobre a cama e após duas roladas, havia perdido a noção de tempo e espaço, adormecendo. O sono durou não mais que meia hora, quando despertou melhor humorada e aceitando de bom grado o que o destino reservara para ela. Naquele momento, pressentia que pelo menos era saudável de saúde, motivo de grande júbilo. Embora com cara de papel craft amassado, sorriu para si mesma. “Como uma gota de sono me faz bem. Nem me conheço, sou outra”.
Reestabelecido o astral, caminhou para o banheiro; pressentia que um banho morno ajudaria a completar o relaxamento tão merecido. "Cinco anos de mesma rotina, satura qualquer paciência. Não consigo entender como as pessoas aposentam suas esperanças numa empresa por mais de 35 anos. Há gosto para tudo: uns para amar outros para sofrer. Ah, vou tomar meu banho que ganho mais"!
Jefrey, como de costume não estava em casa. Quando ia visitá-la, às tardes saia para uma caminhada no parque que ficava à uns quatro quarteirões de sua casa. Ficava por lá até às 19 horas, passava na padaria, comprava pães e leite para o café da manhã que ele preparava para ambos, e regressava ao lar; para ele, itinerante. Visitava-a a cada três meses e durante o intervalo de tempo, comunicavam-se pela internet. Esse romance que pairava entre o amor e a lealdade, já durava alguns anos. Uma das únicas coisas que Leny sentia prazer, não por amá-lo em plenitude; mas alguém que, além de poder contar com os seus ouvidos para o desabafo rotineiro, dava à ela a liberdade que sempre quis. Ela amava ficar sozinha ao lado de sua autonomia e independência adquiridas.
Leny lançou sobre o corpo quase o frasco de creme. Cheirava tal qual dama da noite e realmente, esperando ser bem amada, sentia-se uma musa. Vestiu a camisola que comprara especialmente para essa visita, que mesmo sob os contratempos, fazia-a ressurgir da mesmice; borrifou umas gotas de perfume que exalava feminilidade atrás das orelhas e pescoço e pôs-se a esperá-lo. O contraste da cor morena desfilava sensualidade em oposição ao branco-gelo. Conforme o planejado à mesa de café, amariam até exaurir o fôlego e leves de corpo e alma, sairiam a pé para jantar.
Finalizaram a conversa daquele dia, uma vez que o assunto em pauta foi a lei da obrigatoriedade, nada mais saudável e convidativo que um espairecer permeado pela soltura do espírito e pés acolhidos pelos chinelos Havaianas, sob o ofuscamento das luzes artificiais, foscas e amareladas que iluminavam a rua, livres e liberados daquilo que foi debatido e pautado sentados à mesa do café.
Faltavam minutos para as sete horas. Olhou pelo vitrô da sala e viu a fileira de luzes da rua acesas. Apressou os preparativos e apurou os tímpanos, pois não levaria tempo algum e a chave faria ruído na porta. Relaxada e emocionalmente preparada para recebê-lo para o que der e vier, acionou o controle do som e a sala foi invadida por um instrumental fora das convecionalidades musicadas da banda Aera, pois pensava que a música e mansidão são as solenidades e prenúncio dos amantes; porém também imaginava que superior aos cortejos e as fantasias preparatórias, estão a devassidão do banquete sexual aliviador de neuroses.
Ao pensar isto, espreguiçou o corpo relaxadamente ano divã. Os nocivos sentimentos e a insatisfação rendem-se facilmente ao esquecimento quando alimentados por novas e irrestritas emoções prenunciam o gozo orvalhado da insustentável leveza do ser; ápice da vida. Envolvida neste presságio, Leny sorria das bestialidades mundanas.
Nesse Maniqueísmo inesperado ululante de ver-se entre o bem e o mal, por onde passava, varria com os olhos os ambientes da casa e em cada um deles, notava algo diferente. Deitada, ao levantar o pescoço e mirar o teto da sala, viu algo demasiado esquisito, que por mais que ela embrenhasse em universos surreais, jamais conseguiria desvendar e discorrer em palavras a silhueta vista: "As divagações pairam numa inconstância tão perene diante da consciência, que às vezes tenho receio de ser o que sou".
Ululantes são os berros que os estúpidos urram e a meia dúzia de sábios finge não ouvir; mesmo porque eles sabem que a ignorância consumida com os ingredientes encruados é indigesta a ponto de dar nós e engasgar a massa consumidora.
Passara das sete horas em muitos minutos. Leny intranquilizou-se com o atraso. Levantou-se e foi à geladeira, quando viu um bilhete perdido no meio da fazenda de bichinhos que possuía na porta. Rapidamente, sacou o que o prendia e tomando-o na mão, leu em voz alta: “Estou saindo para viajar. Nos falamos assim que voltar, isso se não cortarem a internet, único meio de comunicação que possuo. As contas estão atrasadas. Beijos”.
Perplexa, murmurou: “Não acredito! Vem com essa justificativa barata dizendo que as contas estão atrasadas? Nunca teve dinheiro mesmo, qual é a novidade nisso!? Sempre aprontando! Canalha”!
Correu até o quarto, custosamente pegou os sapatos, que cuidadosamente depositou entre as paredes debaixo da cama. Abriu a porta da sala, enfileirou-os e com um pontapé surdo-mudo, lançou-os na rua. Estão cansados demais e merecem descansar na segunda feira, talvez o resto de suas existências. A crise econômica geradora de crises, antecipou as férias coletivas de fim de ano, beneficiando os escravos de patrões algozes.
- Adios trabajo! Liberdade é tudo!
Boa tarde!