O jardim da morte
Mil e trezentas rosas amanheceram plantadas na praia de Copacabana. Ninguém avisou nada, não chamaram a imprensa, não pediram autorização às autoridades. Plantaram as rosas e um cartaz com o nome triste: Jardim da Morte. E a explicação óbvia: mil e trezentas mortes.
Era preciso dizer mais? As rosas eram lindas, eram belíssimas, mas dolorosas, sangrando de dor. Já plantaram cruzes negras na praia; murcharam, feneceram. Já plantaram corpos, representando os mortos; cansaram-se de ficar expostos ao sol, sem chamar a atenção de ninguém, inúteis.
As rosas, pelo menos, eram lindas. As cruzes eram de mau gosto. Os mortos sempre são de mau gosto. As rosas sempre são lindas; vivam as rosas!; são a beleza e a beleza é perene. Contra o efêmero da areia, que se escoa na ampulheta dos dias, cristais vagos, perecíveis, o perene da beleza.
Um jovem passou correndo na praia, com uma bola na mão; sentiu a brisa do mar, aspirou sofregamente o perfume da comunhão do azul do céu com o azul das águas; era como uma revelação de que o dom da vida vale todos os sacrifícios, todas as mortes; mas era uma revelação abstrata, sem o sopro humano, que vivifica; não viu as rosas, que poderiam lhe dar uma iluminação – Estamos aqui! Fertilizamos este solo com uma semente que é como um espírito, saciai vossa fome e vossa sede! – e passou correndo na praia, com uma bola na mão.
Uma menina parou junto à primeira rosa e derramou uma lágrima sobre as pétalas vermelhas – as rosas eram vermelhas, da cor do sangue, que é a cor da vida, da paixão, mas também da dor e da morte – e chamou a irmã, exclamando, aos saltos, o coração e os olhos querendo saltar para fora do peito e das faces: Olha, Júlia, uma gota de orvalho sobre a pétala da rosa! Olha, tem sangue dentro do orvalho! Será que os anjos estão chorando?
Mas o sol secou a lágrima, que era uma gota de orvalho, que era a lágrima de um anjo, como a lembrar que hoje não existem mais menininhas inocentes assim, nem anjos que choram com as dores dos homens, nem poetas que imaginem menininhas que derramam uma lágrima, que era uma gota de orvalho, que era uma lágrima de um anjo. É preciso que o poeta se lembre de que vive numa selva de pedra. É preciso que o poeta apalpe o seu coração de pedra e acaricie e fira os dedos nessa pedra – ou nesse plástico, pior do que pedra.
É preciso que o poeta volte à realidade da cidade podre. É preciso voltar a cantar a cidade suja, a vomitar o seu asco sobre ela. “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinação e espera”, disse Drummond. O seu lamento era lá por 1940, sobre um mundo derruído com a guerra, mas ainda puro. Hoje não se pode falar palavras delicadas como fezes. Não se pode mais fazer maus poemas, não se pode mais fazer poema nenhum. A alucinação e a espera estão castradas.
Aqueles tempos Rilke já dizia que eram “maus tempos para a poesia”. E hoje, então? Eliot pôde cantar “os homens ocos”; a nós, só nos restam os homens de plástico. João Cabral cantou a pedra, fez grandes poemas secos; nós, com que cacos, de quê?, faríamos poemas?
Certo que Dostoievski disse que “a beleza salvará o mundo”. Mas faz tempo, e no mundo de hoje não há lugar para a beleza.
“Onde está a ferida, está a salvação.” Só mesmo um Hölderlin para dizer isso. Ou um Cristo. Mas então não será salvação para a nossa sociedade temporal. Só no Eterno pode-se ter esperança. Nós, aqui, agora, desistimos de qualquer esperança.
Levaram embora as cruzes pretas, feias. Como sumiram com a cruz de Cristo, feia. Levaram os corpos, inúteis; ninguém, nada seria mudado com a sua presença; talvez, se apodrecessem.
Levaram as rosas; viraram lixo; e eu estou aqui escrevendo, para que não sejam esquecidas. A beleza não salvará o mundo, não há mais salvação, tamanha é a ferida, mas uma vez e outra, e sempre, rosas nascem da areia. Contra qualquer desespero, o orvalho da lágrima nos lembra de que existem anjos, e quem quiser morrer na praia, que morra; eu continuo.