MINHA NAVE

Fechando o livro com o qual me regalava, lembro que estou na fila do consultório médico. Minha vez está quase chegando. Confiro a senha e vejo que não há tempo de ler mais um artigo sem a preocupação de ser chamado e não ouvir.Muita gente ainda está para consultar-se depois de mim. Gente aflita, que balança a cabeça e estala a língua, de impaciência. Que resmunga e franze a testa. Que acompanha com os olhos cada funcionário que passa, com papéis a serem despachados. Papéis que levam seus nomes, seus dados, suas vidas. Papéis que merecem mais cuidado e atenção do que seres humanos.Percebo que de todas as outras pessoas ali presentes nenhuma lê. A única literatura em mão de alguém está servindo de abano para uma paciente impaciente, de seus sessenta ou mais anos. Cada um vive sua espera, sua angústia, seu abandono e dissabor sem a fantástica viagem imaginária de uma boa leitura: a saga de um herói popular, poemas de amor, crônicas de um doido como eu, receitas culinárias... Nada.Sinto pena dessa gente que amarga cada minuto do infinito estar ali. Toma cada gota rascante e ingrata da certeza do quanto não importa ou significa para os atendentes e médicos do local. Nada há que a faça esquecer tudo e sentir prazer, tornando o tempo não sentido.Neste momento, poder ler algo ajuda tanto que me faz esquecer os próprios problemas para ser solidário, intimamente, com tais pessoas. Só lamento que o livro seja uma nave tão desprezada no dia-a-dia do ser humano, ao ponto extremo de me dar a certeza de que uma simples carona seria rejeitada.Pensei tudo isto em minutos. Meu número está sendo anunciado. Lá vou eu, um número, saber se meu caso é preocupante ou não. Seja como for, na volta para casa terei um livro. Talvez dê até um pulinho em Marte, para saber como anda o planeta no qual os cientistas ainda sonham – somente sonham – pisar um dia.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 11/06/2007
Código do texto: T522556
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.