SIMPLES ASSIM

Foi tudo muito simples. Literalmente.

Hoje pela manhã, a caminho de uma consulta rotineira, comecei a perceber uma tênue mudança no cenário que me rodeava. Nunca havia ido ao médico, que encontrei por acaso em uma consulta trivial no site do plano de saúde. Por este motivo, fiquei levemente intrigado, ao revisitar antigas imagens.

Eu, que todo dia sigo o corriqueiro caminho entre o Brooklin e o Itaim Bibi, dois bairros 'nobres' da cidade, me perdi na graça da dualidade do Jardim Miriam, um bairro simples da zona sul de São Paulo. As diferenças são relevantes, mas a metamorfose foi sutil.

Os prédios, pouco a pouco, iam perdendo seus andares, até se transformarem em casas rudimentares, mas singelamente agradáveis. Os ternos e calças jeans começaram a ser substituídos pelas roupas coloridas, soltas, e os chinelos havaianas remendados. As ruas iam estreitando, enquanto se enchiam de pessoas alegres, não correndo, mas sorrindo.

Ao passar pela frente do número 885, entre um chaveiro e um sapataria, nada vi além de uma parede amarela descascada, com uma porta sem acabamento, de plástico antigo. Passei reto, pois meu cérebro não me permitiu compreender que ali poderia funcionar um consultório. Estacionei o carro ao lado de uma escola pública, e as vozes das crianças misturadas me fizeram voltar no tempo, quando eu aprendia a fingir que a lata amassada era bola para jogar futebol em uma escola no Guarujá.

Fui caminhando até o lugar, enquanto desviava das simpáticas interações que iam acontecendo. Piadas sem preconceito nem pretensão, comida simples na mesa de plástico. Calçadas antigas, que parecem espinhas dorsais que unem todas as partes do corpo social, permitindo seu movimento.

Na recepção, a chamada simples, o nome anotado à lápis em voz alta, a mão da senhora colocando letras bem formatadas, recém aprendidas e não viciadas, em minha guia. Nada de Exame, Veja, Carta Capital, ou The Economist. Somente a Caras e outras faces figuravam ali.

Já dentro do consultório, não evitei passar o olhar despretensioso pela sala (extremamente envergonhado, logo em seguida), pois as paredes, a janela e todos os instrumentos não me lembravam a imagem branca, quadrática e perfeccionista de um consultório de filme; Dr. House não se prostrava à minha frente, mas um doutor de sotaque agradável, um espontâneo argentino, tão simples quanto seus modos.

Em poucos minutos de uma afável conversa, compreendo que ele quer quebrar um paradigma do mundo cardiológico. “No son dos sino tres!”, repetia com um vigor amável, algo que eu mesmo não podia compreender. Soltei um sorriso bom, queria ajudá-lo em seu sonho. Disse a ele, que sonho por sonho, tinha a pretensão de me tornar um escritor um dia, e ele deixou escapar 'una amplia sonrisa'.

Envolto naquela atmosfera de humildade plena, ele me mostra, para o brilho de meus olhos e total orgulho de um desconhecido completo, erradicado de Buenos Aires no Jardim Miriam, que ganhou um Prêmio Jabuti, em 2011, por seu livro sobre Eletrocardiograma. Foi a cereja do bolo que eu comeria voltando para a casa.

A consulta foi usual, rápida, mas quase atemporal. Desejamo-nos boa sorte, bom fim de semana, boa vida que segue.

De todas as certezas mais complexas da vida, mais caóticas, homéricas e insolúveis, apenas com uma voltei à minha vida rotineira:

A simplicidade, apesar de simples, é indescritível.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 04/12/2014
Código do texto: T5058405
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