Desamor

Era uma manhã ensolarada de domingo. Geralmente, nesse momento do dia, costumo ir dar minhas caminhadas e corridas para tentar manter a forma. Faço isso com prazer. Gosto de me exercitar em ambientes abertos, perto das pessoas, da natureza e vendo o movimento dos carros indo e voltando. Tudo isso com fones nos ouvidos, alimentando a alma com música, pensando na vida. E é o momento em que eu mais reflito sobre ela.

Na mesma manhã, ao terminar o exercício dominical, fui ao supermercado. Meio a contragosto, é verdade, já que desde a infância não sou afeito as filas que lá encontro. Nunca tive muita paciência para isso. Mas as responsabilidades chegam, e ir até um deles não é mais uma questão de escolha, é uma obrigação, necessidade.

Quando estou ouvindo músicas, com fones nos ouvidos, passo a viver no mundo da lua, com o pensamento em lugares que não condizem com o presente. Foi assim que entrei ao supermercado. Entre uma sessão e outra, procurava alguns produtos em que estava necessitando em casa. Na sessão de produtos de limpeza, comparando marcas e preços, ouço resmungos, mesmo com os fones nos ouvidos. Imediatamente procurei de onde vinham. Achei. E preferia não ter achado.

Foi revoltante. Medíocre. Repugnante. E de uma pobreza de espírito, conhecimento e humanidade imensurável.

Ainda com os fones nos ouvidos, avistei uma senhora, esta parecia ter pra lá de seus 60 carnavais. Com uma expressão facial firme e agressiva ela mantinha o dedo em riste. Outra mulher, com expressão facial perplexa, ouvia os gritos.

Tirei um dos fones para saber que diabos acontecia ali. Ouço a desprezível frase vinda da primeira: “Sua preta, quem mandou pegar o meu carrinho?!”. Seguido de: “Esse povo é assim, uma ousadia só!”. Eu estava presenciando um crime de racismo.

Misturando perplexidade e uma calma surreal, a vítima pediu desculpas por ter pegado um carrinho vazio de supermercado, abandonado em outra sessão. Isso mesmo, um carrinho vazio foi o motivo do despejo de um caminhão de ignorância. Mostrando equilíbrio e parecendo não saber o que estava acontecendo com ela ali, a discriminada devolveu o carrinho, e saiu como se nada tivesse acontecido.

A perplexidade tomou conta de alguns próximos às duas. Um senhor, se mostrando solidário, acompanhou a ofendida lhe proferindo palavras de solidariedade. Repito, ela não sabia que estava sendo vítima de um crime.

Diante da gravidade e pequenez do ato (sem contradições), voltei a terra e custei a acreditar que aquilo tinha acontecido. Sei da existência enraizada do racismo no país. Ver pela TV revolta, presenciá-lo não só revolta, como dói. E dói na alma não só da vítima, mas também de quem presencia e refuta tal atitude.

Errei, também. Não fui corajoso a ponto de aconselhar a vítima para ir à delegacia prestar uma queixa. De alguma forma, poderia ter ajudado a pelo menos mostrá-la que aquilo que acabara de acontecer era um crime contra ela. Não fiz. Arrependo-me até hoje. Indignação sem atitudes não é válida.

A reação que tive foi de sair do local. E sem as compras que lá iria fazer. A chateação foi maior. A reflexão em relação ao ser humano também. Ele adoece a cada dia. Triste constatação.

“Misture as tintas, misture os corpos”. (O Rappa)

Paulo Moraes
Enviado por Paulo Moraes em 06/10/2014
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