Maluco esperto (*)

Malaquias era o nome dele. Alto, magro, barbudo, maltrapilho, descalço e sem família a cobrar-lhe o sustento ou a custear-lhe as necessidades do cotidiano. Ninguém chorava as dores, acalentava os prantos ou amenizava o infortúnio do pobre Malaquias. Também não existia quem exigisse dele bons modos, boa educação, bom exemplo, a não ser a sociedade que lhe impunha as normas da convivência social, o respeito às regras da boa conduta, da disciplina e da ordem.

Malaquias não trabalhava. Também não roubava. Pedia. Esmolava favores dos transeuntes, acostumados a vê-lo nas ruas a mendigar. De alguns, recebia uns trocados; de outros, como os comerciantes de restaurantes e lanchonetes, aceitava sobras de comida. Para não aborrecer os clientes, seus benfeitores exigiam que ele se ausentasse nas horas de maior movimento.

Ninguém lhe vendia cachaça. Esse acordo de “cavalheiros” valia a Malaquias a garantia da sobrevivência. De barriga cheia (ou quase), faltava, ainda, a roupa limpa para trocar a que estava rasgada, cheirando mal e ameaçando-lhe mostrar as “vergonhas” em público. Vez ou outra, um puritano resolvia o problema.

Embora barbado, sujo e maltrapilho, havia quem gostasse de trocar alguns dedos-de-prosa com ele. Os desocupados não se cansavam de incomodá-lo, chamando-o pela alcunha que tanto o irritava:

– Bacalhau!

– É a b… da mãe, seu filho da p…!

– Bacalhau! –– gritava o menino de rua, companheiro de infortúnio.

– Bacalhau é o veado do seu pai, aquele corno! – dizia enquanto o garoto saía em desabalada carreira por entre os automóveis em movimento, até encontrar abrigo em uma loja qualquer.

Nessas ocasiões, Malaquias gesticulava em demasia. Os órgãos genitais, apalpados pela mão direita, eram exibidos aos seus desafetos como forma de demonstrar superioridade. Dizia impropérios que fariam corar de vergonha muitos dos humoristas brasileiros.

Depois de alguns minutos, Malaquias voltava ao ponto de permanência, esgotado pelo cansaço. Ali ficava pelo tempo permitido por seus detratores, fumando um cigarrinho ofertado por alguma pessoa interessada em angariar-lhe a confiança, para explorá-la oportunamente.

Todos se divertiam com sua intolerância ao apelido.

– Bacalhau… – falou alguém junto dele.

O rapaz esquivou-se para não ser atingido por uma pedra.

– Que é isso Malaquias? Sou seu amigo! Quer um cigarro? Eu dizia: Bacalhau… é a mãe desses filhos da p… que mexem com você – completou o algoz, apaziguadoramente.

O “amigo” conduziu-o a um canto da praça, passou o braço sobre seus ombros sujos, curvados sob o peso dos anos e pelo desconforto vivido nas ruas da cidade, até vê-lo acalmar-se.

Em momentos de relativa tranquilidade, Malaquias conversava com algumas pessoas. Todos queriam ouvir episódios de sua vida. Segundo ele, fora razoavelmente escolarizado, o que se supunha verdade, haja vista a correção no uso das palavras.

Os pais morreram em passado distante, deixando-o sozinho aos seis anos de idade. Fora criado em orfanato e por pouco não concluiu o segundo grau, trabalhou como vendedor autônomo, casou-se aos vinte e três anos, deixou a mulher aos vinte e cinco, sem filhos, e com acentuado peso na cabeça, provocado pelos muitos chifres recebidos da esposa infiel.

Desgostoso, Malaquias bandeou-se mundo afora, sem rumo, mergulhou na cachaça, esqueceu os parentes, adotou uma vida solitária, errante, até chegar àquela cidade onde vivia contrariado com a alcunha imposta pelos habitantes do lugar.

Certa feita, um advogado com escritório próximo à área de permanência de Malaquias, em hora de pouco movimento, sentou-se ao lado dele. Disse-lhe pretender filiá-lo ao Partido do Homem Honesto – o famoso PH2, como era citado pela imprensa –, para candidatá-lo à disputa de uma cadeira na Câmara dos Deputados.

– Mas, doutor, eu?

Malaquias julgava ser mais uma brincadeira para irritá-lo.

– Sim, você, um homem honesto. Nunca assaltou nem furtou ninguém em todos esses anos de sofrimento e humilhação, vividos na rua. Precisamos de gente que, embora não trabalhe, não roube. Vamos renovar o conceito de político no país, pelo menos no segundo aspecto da questão, a honestidade!

– Sei não, doutor. Não dará certo. Não me sairei bem com essa gente esperta. Trabalhar pouco ou nada até faz meu jeito, mas, mentir, fazer intriga, desviar recursos destinados ao pobre, roubar a consciência (o voto) de gente inocente… não me agrada.

– Bobagem, Malaquias! Você vê televisão ou lê jornal demasiadamente, para saber de tantas verdades. Vamos, aceite! Precisamos melhorar o país. O povo quer mudanças, deseja a alternância do poder, anseia por melhoras nos sistemas de saúde e de segurança. Somente um parlamento comprometido com a moralidade poderá fazê-lo. Aceite!

O advogado era convincente. E bastante esperto. Conhecia os meandros da política e as oportunidades de obter vantagens lícitas ou não.

– Doutor… durante a campanha, não irão me chamar de Baca… o senhor sabe… não gosto desse apelido!

– Veja Malaquias: o vulgo é uma expressão bastante utilizada pela sociedade. Ronaldo é o Fenômeno, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé ou o Rei Pelé, Maria das Graças Meneghel é a Xuxa, e até o ex-presidente da República é chamado de Lula. (Lula ou Mula?) Portanto, não há problema de alguém apelidá-lo de Bacalhau.

– Doutooor... Olhe o respeito!

Finalmente o advogado convenceu Bacalhau a filiar-se ao PH2. Passados os meses, vieram a campanha eleitoral, as manifestações, os xingamentos, as promessas vãs, as mentiras, as calúnias, as verdades sobre candidatos corruptos, desonestos e aproveitadores. Em número assustador, surgiram evangélicos que, da Bíblia, conheciam apenas o “pedi e dar-se-vos-á”, e se fizeram candidatos.

Esse advogado, de nome desconhecido da maioria dos frequentadores do ponto do Malaquias, na praça pública da cidade, um rábula de pouca expressão, também registrou a sua candidatura, a da mulher e de um filho de vinte e um anos, um mancebo sem qualquer experiência na vida, na esperança de serem consagrados deputados federais.

A praça tornou-se pequena para tanta gente. A maioria era de cabos eleitorais, portando bandeiras imensas com nomes dos candidatos.

Malaquias, sem recursos financeiros para a campanha e sem apoio de marqueteiros, pedia votos aos que antes o insultavam. Nem sequer se aborrecia quando o chamavam de Bacalhau.

Estava transformado. Era outro homem. A todos desejava paz e amor. Não dizia mais impropérios. Agora era light. Como um bom papagaio, repetia os ensinamentos daquele advogado matreiro, seu guru político, que optou por não alterar sua aparência física como arma de campanha.

O número de pessoas que o apoiavam crescia a todo instante.

– Os eleitores votarão no homem simples, rude, radical no seu jeito de trajar, saído do nada, até como protesto – assegurava o advogado.

Malaquias aprendeu a lição. Cumpria as orientações à risca. Junto com seus seguidores, em número cada vez crescente, entoava o refrão:

– Bacalhau, Bacalhau, deputado federal!

Terminada a votação, a contagem dos votos: oitocentos mil sufrágios para o candidato das ruas, o homem do povo, a pessoa honesta, a esperança do pobre, a salvação da pátria – Malaquias Bacalhau da Silva, seu novo nome, alterado por iniciativa do advogado que o iniciou na vida pública.

O advogado, a mulher e o filho receberam 118, 129 e 131 votos, respectivamente, e se elegeram deputados federais, graças ao famoso quociente eleitoral. Uma excrescência da lei.

Bacalhau saiu das ruas. Tornou-se deputado federal. Revoltado com os desmandos na administração pública, o eleitor, insatisfeito com a impunidade que grassa vergonhosamente sob o beneplácito das autoridades, elegeu um “ninguém” como forma de reprovação. Também levou à terceira esfera do Poder, figuras desconhecidas, possivelmente aproveitadoras da ingenuidade (seria irresponsabilidade?) de um povo inculto, desmemoriado e, deveras, ausente.

A vida mudou para Malaquias Bacalhau da Silva, para o advogado, a esposa e o filho deste, elevados ao cargo sem a aprovação convincente das urnas. Doravante, serão chamados de Vossas Excelências, nobres deputados, tratamento nobiliárquico, fidalgo, como se descendessem da nobreza ou merecessem o respeito do cidadão por méritos e qualidades individuais.

A realidade era outra. Malaquias era um notório vagabundo, cachaceiro e irresponsável. O advogado, um rábula incompetente. Sua mulher e o filho, sem nenhuma expressão, eram despreparados e inexperientes para o exercício da função pública.

Não dá para assustar. O país de Bacalhau (agora é nome de família, devidamente registrado em cartório) não surpreende. Em eleições passadas, em que o voto revelou o sentimento de revolta popular, já elegeu um hipopótamo (Cacareco), um macaco (Tião), um bode (Cheiroso) e um índio aculturado (Juruna).

Recentemente, o brasileiro, motivado por interesses escusos, elegeu Lula e Dilma, presidentes deste sofrido Brasil. Nossa amada pátria continuará a mercê dos bandidos encastelados no poder, caso o voto do eleitor escolarizado, consciente e desejoso de mudanças não supere o número de votantes levados a crer nas mentiras e calúnias dos que anseiam por implantar o regime autoritário – o comunismo – em voga na miserável Cuba dos Castro, na decadente Argentina, na falida Venezuela e em outras republiquetas de nosso maltratado continente.

Pense bem, eleitor! Não queira viver em um país dominado por maioria corrupta. A mudança requerida por brasileiros de boa índole é imperiosa. Mudar ou sucumbir. Escolha a primeira opção.

(*) publicado no livro Umas e Outras, de minha autoria, com acréscimo do último parágrafo.