O INFERNO DE CADA UM

Andei falando tanto em inferno que fiquei impressionado. Meus amigos, aqueles que são religiosos, me aconselharam e até me repreenderam por fazer humor com um assunto tão sério. Na verdade eu nunca levei muito a sério, nem o inferno nem o paraíso, lá para onde vão as almas puras e limpas de pecados. Claro que eu sou temente a Deus. Não aquele temor que transforma o Grande Pai num implacável juiz sempre pronto para castigar severamente ou perdoar incondicionalmente, desde que o sujeito, depois de mostrar arrependimento, confessar os pecados e todos os males que andou cometendo, engajar-se sincera ou protocolarmente em uma religião. De preferência aquelas que além das indulgências, garantem ascensão social e financeira. Tudo em troca da bagatela de dez por cento do que ganha ou venha a ganhar com a graça do Senhor e por interveniência do chefe, mentor, conselheiro ou coisa assim. Tenho. e tenho muito medo Dele me pegar numa mentira. Não vou agora cometer a cara de pau de dizer que eu não sei mentir. Claro que eu sei mentir, minto muito bem e com frequência. Só não quero mentir para mim mesmo ou para Ele, que eu não sou besta. Depois de fazer um balanço dos meus pecados, e põe pecados nisso, descobri que não tenho muita chance de salvação integral, mas também, eu acho que o fogo eterno com enxofre e ranger de dentes seriam uma punição muito severa para um pecador mediano e sem grande originalidade, mesmo no chamado pecado original, que em bons tempos idos, com vigor e galhardia, era o meu pecado preferido. Deveria existir um inferno intermediário, mais leve para os pecadores do bem. Já estou me incluindo nessa categoria. Sem mais preâmbulos, Vou entrar logo no assunto. O caso é que eu tive um sonho, e este sonho me pareceu uma espécie de aviso vindo das esferas superiores, para certamente livrar a minha cara ou a minha alma do infame tridente do tinhoso.

Imagine só. Eu sonhei que havia morrido, mas, o sonho não explicou como foi a minha morte. É irrelevante. Lá ia eu, leve e solto vestindo um camisolão branco, entre nuvens brancas num caminhar etéreo rumo ao paraíso. Na hora eu achei mais do que merecido. Afinal. Apesar de alguns deslizes, jamais cometi pecados graves, falo de pecados que prejudiquem o próximo, a quem devo amar como a mim mesmo. Procuro ser generoso, na medida das minhas posses, e às vezes um pouco mais, Não cometo nem aceito qualquer tipo de deslealdade, além de solidário, mantenho um severo senso de justiça. Portanto, nada mais natural que ser acolhido no Reino da Glória. Depois das formalidades burocráticas, um anjo, que por ignorância não consegui identificar, levou-me a um lugar que sem dúvida alguma, justificava o título de Paraíso ou Reino da Glória. Era um campo muito verde e muito florido, pássaros de belíssimas plumagens entoavam lindos e suaves cantos, acompanhados por solos de harpa magistralmente executadas por uma orquestra de anjos. Tudo era lindo. Muito lindo!

Passei a observar as pessoas, todas elas pareciam felizes. Mesmo as mais velhas, demonstravam uma aparência bastante saudável. Constatei que no paraíso não existe cansaço nem doença. Fiquei procurando algum conhecido. Eu já estava doido pra jogar um pouco de conversa fora. Ninguém. Nenhum conhecido. Achei que pelo menos a minha mãe deveria estar por lá. Também não a encontrei. Não era fácil reconhecer alguém no meio daquela multidão vestida de branco caminhando com calma e rindo sem estardalhaço. Tudo era calmo. Tudo era branco, brando e imaculado.

Lindas e sorridentes jovens serviam uma leve refeição, que todos aceitavam com prazer. Tudo era feito com prazer e por prazer. No céu não existe fome. Delicadamente declinei da refeição que me era oferecida. Era um suflê de ricota com chuchu, que na minha existência mundana, já não fazia a minha cabeça... Eu estava seco por uma cerveja. E se pintasse uma feijoada...

Tentei puxar conversa com alguém, só pra quebrar o tédio. Me olhavam sem nenhum interesse e saiam saltitante, rindo e cantando hinos de louvor. Já estava ficando chato.

Percebi que o anjo que me recebeu na chegada estava me observando. Fui falar com ele. Eu não sabia o tratamento adequado para falar com um anjo. Improvisei: Seu anjo! Por favor. Negócio e o seguinte: Não estou entendendo nada. Desde que eu cheguei aqui, estou sozinho, não conheço mínguem, ninguém fala comigo... Se aqui é o céu, por que todos estão felizes, menos eu? É assim mesmo, disse. Este é o céu para eles, mas é o seu inferno.

-Ca-ce-te!!!!!