GALINHA DE ESTIMAÇÃO

Os franceses, sobretudo parisienses, são diferentes, às vezes nos assombram, mesmo que a globalização insista em padronizar condutas e aspirações. Quando estive em Paris, em 1967, boa parte do tempo residi clandestinamente no oitavo andar do belo prédio em que morava a família de Gérard Bony, numa “chambre de bonne”, quarto que, antigamente, destinava-se à empregada. Tinha de subir pela escada externa de serviço e o WC era coletivo, com uma patente à moda turca, se me entendem bem. Conheci Gérard num bistrot do Quartier Latin, muito frequentado por franceses alternativos, estudantes, intelectuais e, sobretudo, imigrantes sul-americanos e africanos, sendo muitos deles refugiados políticos. Meu francês já era bem razoável, comunicamo-nos com facilidade e acabamos por ficar amigos. Como eu andava sem paradeiro, Gérard ofereceu-me morada e, para tanto, adquiriu uma cama pneumática para colocar sobre o chão de ladrilhos do referido quarto, onde ele também residia, por divergências com os pais. Tinha 20 anos, Gérard, 23. Eu precisava inflar o leito todas as noites e desinflá-lo quando acordava. Meu amigo trabalhava na Prefeitura de Paris e, na Cooperativa de Servidores, tinha muitas vantagens para adquirir alguns víveres e conservas, que, em pouco tempo, liquidei, quando chegava à noite, morto de fome. Meu amigo francês é um cara culto, inteligente, mas conservador e um tanto maniático. Mais do que um parisiense típico, o cara já trabalhou num sem número de atividades, em diversas cidades da França, encontrando-se hoje aposentado. Salvo a esposa, que vive em outro minúsculo apartamento vizinho, não conta mais com parentes vivos. Bebia muito eventualmente - sempre vinho - e só comia produtos biológicos, mas, nas oportunidades em que com ele estive em Paris (ou mesmo passando conosco uma temporada de mais de doze dias em Lisboa), quando nos encontrávamos, especialmente em hotéis, liquidava com meus vinhos e se atirava impiedosamente aos queijos, pães, patês, acepipes, manteiga e embutidos ou doces que a gente comprava e levava para o desfrute das horas íntimas, no quarto. É uma figura. Pois bem, Gérard tem amizade com uma senhora parisiense que ocupa alto cargo na ONU e viaja pelo mundo inteiro em missões de nível: conhece até as nossas Missões, que cita como lugar mágico e que ainda, infelizmente, não conheço. Acreditem, essa senhora, que ganha muito bem, é pessoa culta e vive só, tem uma galinha de estimação, Cocotte, que Gérard toma conta nas viagens internacionais da dona. O assunto é tão sério que, certa feita, Cocotte teve um piripaque e Gérard revirou Paris atras de um veterinário especialista em galinhas. Acabou encontrando, pagou duzentos euros pelo atendimento e a penosa recuperou-se garbosamente. Ele me explicou que sua amiga é proprietária de uma bela e confortável casa com jardim, nos arredores de Paris, e que lhe convém o sacrifício. Ela até adquiriu e colocou-lhe à disposição, a título de incentivo, uma televisão de tela grande e um atrativo colchão moderno. Dele recebi, há algum tempo, foto com a mimada "penosa", satisfeito da vida no cumprimento de tão conspícuo e indelegável mister. Bem, agora, a nota triste, há algum tempo ocorreu o falecimento do galináceo. A estas horas, pois, Cocotte deve estar batendo asas num plano superior, embora eu julgue difícil que possa encontrar alhures a mordomia que desfrutou em Paris. Passaram-se meses e, vocação é vocação: recebi recente mail de meu amigo, dizendo que aceitou tomar conta, por uns dez dias, de quatro gatos e um cachorro de uma amiga, que mora num pequeno apartamento à Chatou, bem perto de Paris, onde ele já residiu e que eu e Andrea frequentamos. No entanto, para mim, muito pior que o passamento de Cocotte, foi a mudança do meu velho amigo para Nantes, vendendo seus dois imóveis na Capital. Gérard, com sua esposa Martine, significavam uma ligação bastante forte com Paris por cinquenta anos, um elo com meus tempos jovens e aventureiros e de muitas outras estadias marcantes por lá, ao longo do tempo. Uma espécie de recuperação de identidade e de reencontro pessoal. Talvez seja uma ruptura emocional, quase familiar, de poderoso impacto, notadamente na escolha de futuras viagens. Fica o legado da nostalgia.