CRÓNICA DE UM MORTO CHAMADO FILINTO ELÍSIO

Quando tive conhecimento de que o escritor Filinto Elísio escalaria a «Cidade das Acácia» para participar de dois eventos viabilizados pelo «Movimento Literário Kuphaluxa», uma agremiação artístico-literária criada para promover o diálogo inter-cultural entre países de língua portuguesa e para promoção da leitura e da literatura moçambicana, fui imediatamente visitado por um soneto seu intitulado «Soneto», antes mesmo de eu ter caído em mim a suspeitar da minha própria sanidade:

«Já vem a primavera, desfraldando/ Pelos ares as roupas perfumadas,/ E os rios vão, nas águas jaspeadas,/ Os frondíferos troncos retratando;// Vão-se as neves dos montes debruçando/ Em tortuosas serpes argentadas;/ Pelas veigas, o gado, alcatifadas,/ A esmeraldina felpa vai tosando.// Riam-se os céus, revestem-se as campinas;/ E a natureza as melindrosas cores/ Esmera na pintura das boninas.// Ah! Se assim como brotam novas/ Se remoça todo o orbe… das ruínas/

Dos zelos renascessem meus amores!»

A suspeita de sanidade fundamenta-se no facto de Filinto Elísio, pseudónimo literário do Padre Francisco Manuel de Nascimento, famoso pseudónimo arcádico que lhe foi dado pela D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, ter sido um importante poeta do neoclassicismo português e tradutor que verteu para português os «Martires de Chateaubriand», «As Fabulas de Lafontaine» e «Púnica de Sílio Itálico», em cujos seus escritos atacou o clero e aristocracia portuguesa, combatendo a superstição e a prorrogação da abertura de novos horizontes do pensamento sociocultural do seu tempo, nascido na terra de Camões, em Lisboa, a 23 de Dezembro de 1734, tendo morrido a 25 de Fevereiro de 1819, na capital francesa, Paris, onde refugiou-se após ter sido denunciado ao Santo Ofício como sendo usuário da leitura de livros racionalistas francesas proibidos pela inquisição na época, ele que era um acérrimo adversário da Arcádia Lusitana.

Sendo prova irrefutável ou suspeita de sanidade apenas, da parte que me couber um comportamento, um pronunciamento, uma responsabilização, ou suas transversalidades, a verdade é que uma questão urgiu que viesse ao de cima, perante as circunstâncias que me faziam enredo de tal maneira que neste preciso instante oscilou-me a veracidade da frase que diz «Loucos, precisa-se nos olhos de um mundo louco!»: Quem não ficaria mentalmente perturbado se de repente esbarra-se com um homem que abandonou a sua tumba, no longínquo século XIX, para visitar os nossos dias?

Foi então que resolvi fazer-me presente, às 18 horas do dia 20 de Março, na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), no lançamento do livro intitulado «Me_xendo no Baú. Vasculhando o U», uma colectânea de 35 poemas da autoria do «morto retornado» que altercam entregas de almas com os trabalhos plásticos do pintor luso-australiano Luís Geraldes e um disco compacto com declamações dos poemas da mesma obra, feitas pelo encenador luso-cabo-verdiano João Branco e pela cantora cabo-verdiana Nancy Viera. A loucura de desafiar o mundo do fantástico tinha um intuito: para que eu pudesse ver com estes olhos que a terra irá comer este «morto retornado» para o mundo dos vivos, Filinto Elísio, e se tal não me fosse suficiente, eu igualmente tivesse de participar da interacção que o «morto retornado» teria na sexta-feira do dia «Dia Internacional da Poesia», com o público de Maputo, ladeado por jovens poetas moçambicanos do «Movimento Literário Kuphaluxa», mais exactamente pelos membros da revista de literatura moçambicana e lusófona «Literatas», contando com a presença de um dos expoentes máximos da literatura produzida em Moçambique, o escritor Ungulani Ba Ka Khossa, entre outros já consagrados no panorama literário moçambicano e os demais interessados.

«Viver perto do cemitério não significa ter morrido.» Confirmei este dito quando iniciou o evento de lançamento da obra «Me_xendo no Baú. Vasculhando o U», na AEMO. O suposto «morto retornado» do longínquo século XIX encontrava-se sentado no painel principal do evento, flanqueado pelo escritor e representante do Fundo para o Desenvolvimento Artístico Cultural (FUNDAC) Pedro Chissano e pelo representante da Literatas, o também escritor Eduardo Quive.

«Quando é que os mortos mais assustam: quando se apresentam para os vivos em carne e osso ou quando articulam palavras imbuídos da mesma naturalidade com que os vivos o fazem?» Esta inquietação insuflou a minha alma de inomináveis medos até que o escritor Japone Arijuane, a quem cabia a mediação do lançamento da obra, concedesse a palavra ao «morto retornado», este que estava ali bem a minha frente incrivelmente homem de carne e osso para que eu pudesse tomá-lo por um fantasma ou coisa contígua ao mundo fantástico. No entanto a intervenção do morto retornado só chegou a ocorrer depois da intervenção do escritor Pedro Chissano, da declamação, pela declamadora Amélia, de dois poemas do «morto retornado» e da intervenção do escritor Eduardo Quive.

«Filinto Elísio, da pátria irmã de Cabo Verde, dizer que este não é pela primeira vez que acontece, este intercâmbio entre escritores cabo-verdianos e escritores moçambicanos; o poeta pioneiro de Cabo Verde que aqui conviveu connosco, já lá vai quase trinta anos, é o poeta Corcino Fortes – creio que é seu colega na Academia de Letras de Cabo verde, o presidente. De modo que, nós olhamos a presença do nosso colega com muita alegria, porque, de facto, isto vem no esteio do que é a vontade dos nossos povos – e não falo só de Cabo Verde e Moçambique, mas falo de todos os povos que falam a língua portuguesa, particularmente os povos africanos. Por isso, poeta, bem-vindo, creio que há-de ser uma ocasião muito boa para troca de impressões aqui com este público, com estes amantes das letras. É bem-vindo. E muito obrigado. Muito obrigado também, pela vossa presença.» (Intervenção do escritor Pedro Chissano).

«em tua sombra// és Cupido/ rés de tudo/ tu de côncavo/ eu de cravo/ (e despido)/ semblante teu// trava-me/ assim/ teu desplante/ e tal desfrute/ o que me assombra/ e me alumbra// foste tu/ — que rente/ como pente de cabelo —/ fê-lo/ enfim/ ao de leve// E// na penumbra/ esse olvido/ de repente/ a/ se/ es_culpir…» (ES_CULPINDO, in: Me_ xendo no Baú. Vasculhando o U, p. 62.). (Primeira declamação de Amélia).

«(a Weliton Carvalho)// sou este biógrafo/ 1 tanto falhado/ que não se olha/ senão de soslaio/ e que me recusa/ ao pão do dia;// 1 biógrafo talhado/ máscara diria/ de anjo gauche/ cão fiel que me aguarda/ algures na morte;// todavia/ a face não me res_guarda/ — não sou mais nada!» (BIÓGRAFO DO N_ADA, in: Me_ xendo no Baú. Vasculhando o U, p. 71.). (Segunda declamação de Amélia).

«(…) Na verdade [este lançamento] é um bate-papo que vai ser um pouco frustrado; o Filinto está mais poeta do que outros dias, a voz dele não pode alcançar a muitos. É típico da própria poesia: ela é melhor escrevendo do que falando. Ainda bem que temos um livro destes para poder ouvir melhor a voz do poeta. Porque a maior voz dos poetas são as palavras. É uma grande graça para nós ter o Filinto Elísio aqui. Já nos conhecíamos a bastante tempo, através dos “megabytes”, através da internet, através, se calhar tenha sido uma porta, da revista literatas e do próprio movimento Kuphaluxa, que pensou para além de Moçambique. Mas também depois nos conhecemos fisicamente, infelizmente não em nenhuma das nossas terras, mas em um lugar onde fala-se a nossa língua, e hoje nos conhecemos aqui em Maputo — ele sempre falou deste desejo de conhecer Maputo, deste desejo de pisar a terra de Craveirinha, uma terra que ainda ontem ele dizia que os seus pais também pisaram, os seus pais conheceram, os seus pais tiveram uma relação. Então, estamos portanto num encontro, não só com a poesia, mas também um encontro para celebrar a irmandade. Não tanto quanto a lusofonia, porque o próprio poeta tem reservas em falar da lusofonia, mas em todo caso a linha não deixa de nos unir, a língua e as nossas línguas, porque temos muitas línguas, e ainda bem que Cabo Verde reconhece o crioulo como língua nacional, e esperamos que o nosso processo chegue até aí. Não vou falar de «Me_ xendo no Baú. Vasculhando o U» porque é tarefa de todos nós falar deste livro, e ainda bem que está a disposição e todos nós podemos abri-lo e poderemos mexer. Mas uma coisa interessante neste livro é esta intenção do poeta aliar-se as artes gráficas, a pintura, o desenho. Eu acho que este tipo de parceria deve nos inspirar bastante num país onde temos muitos poetas, temos muitos pintores. E é também uma provocação para os tempos em que nos vivemos. O Filinto costuma dizer que este é um livro pós livro. Então seria de facto interessante se pudéssemos ouvi-lo a explicar-nos isto. Medo que tenho desta triste tecnologia que nos frustra, mas coragem que tenho por termos aqui o poeta, e por ser vontade de todos nós, se calhar ouvi-lo. Vai ser como… (riso) então ele diz que vai falando e eu vou reproduzir (risos)» (Intervenção de Eduardo Quive).

«Eu vou começar pela última parte que não é fácil de esquecer: ele quer saudar a todos que estão aqui presentes, “os moçambicanos, os portugueses os brasileiros, que aqui estão, e dizer que lusofonia sim, mas não a «lusoutopia»”. Ele fala de “uma lusofonia de solidariedade entre iguais e uma lusofonia de cooperação e de parceria. Os amigos que estão cá são parceiros. E na arte as fronteiras terão que cair. É verdade que o poeta pode ser uma geografia. Mas ele é sobretudo um cidadão da alma do mundo”. Por conseguinte ele sente que “Moçambique é casa de poesia.” Portanto ele é cidadão de Moçambique. E ele queria dizer que “Moçambique sempre esteve com os cabo-verdianos, a cultura, em particular a literatura foi muito vibrante para o imaginário cabo-verdiano”» (Intervenção do poeta Filinto Elísio, reproduzido pelo escritor Eduado Quive).

Até esta parte o morto já estava morto, pois tratava-se afinal do Filinto Elísio, pseudónimo literário de Filinto Elísio de Cardoso Correia e Silva, um poeta, romancista, cronista e ensaísta dos nossos dias, nascido na cidade da Praia, em Cabo Verde, em 1961, um bibliotecário e administrador de empresas que já foi professor em Somerville, nos Estados Unidos, assessor do Ministro da Cultura de Cabo Verde, tem publicados as obras “Do lado de Cá da Rosa” (Poesia), “Prato do Dia” (Crónicas), “O Inferno do Riso” (Poesia), “Cabo Verde, 30 Anos de Cultura” (Antologia), “Das Hespérides” (Poesia, Prosa e Fotografia) e Praidenmincidade (Romance), e actualmente é consultor Internacional e Administrador do Semanário “A Nação”, em Cabo Verde.

Celles Leta, 23 de Março de 2014

C C Cossa
Enviado por C C Cossa em 02/07/2014
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