EM ESTADO DE CONSERVAÇÃO
Onde havia ninguém, lembrei-me do cão.
Onde estavam os homens neste dia?
Fiz apenas o que o lobo faria:
bastão na mão e o feio feito o caos sem saída,
o não da dissolução do nosso corpo:
há corpo! Acertei a fé no lapso.
Dei com tudo em quem, figura,
há de mim em outro espelho:
assim tolero as diferenças,
assim de tudo faço minhas as palavras do além,
assim, sendo eu, clamo inválidas as mudanças,
quero o mundo como antes, quero era como era,
quero tudo como certo, como fato que não nega:
mulher de seis mil anos, afetividade na forca,
pescoço que apenas sustentava a cabeça:
quero o antes, quero tudo como era,
a ordem latente contendo as primaveras,
o diploma como a carta do saber,
o bem aqui, o mal ali,
o certo cá, o vil pra lá,
quero o tempo como tempo:
e não como um fato a ser desorientado.
A cabeça é um evento. Mas o corpo é só respeito.
Ah, o tempo descoberto, os corpos mais cobertos,
o patrão como um fato, autoridade como um tipo,
a palavra como destino,
e o infortúnio como acaso: ah, o tempo descoberto.
Tiraram tudo do lugar. Querem o fim de mim.
Fato que não vou permitir.
Onde havia ninguém, fiz a sujeira que coube.
Se ninguém viu, não há sujeira: ah, a ética de antes!
Ah, o passado demudado:
havia a menina pra curtir,
havia a outra pra casar.
Ah, o mundo transtornado:
quem é que vai manter a casa limpa,
os filhos banhados,
a comida quentinha, o aplauso da vizinhança,
o exemplo a ser copiado?
Tempos bons, saudade.
Saudade das marchinhas que avisavam,
‘já que a cor não pega’,
eu podia ter amor. Quantos quisesse.
E agora, todo mundo pode tudo.
E agora? Quem diverte e quem casa?
E agora?
Onde há ninguém, seguirei de tacape na mão,
resgatando o tempo que de mim jamais sairá,
a eliminar a sanha de quem vive feito aranha
a fazer teia pra cá, a tecer teia pra lá,
e assim serei supremo, guardião da boa fé:
voltaremos, minha gente, ao tempo do besouro!
Quando tudo era obediente às pauladas.
Tempo bom, minha gente, tempo bom...