" ANGELINA"
" ANGELINA"
Mesmo que eu me dispusesse a potencializar a minha memória com afinco não saberia precisar com exatidão a data em que Angelina chegou à minha casa.
Era ela uma mulher de pouco mais de cinquenta anos, de estatura mediana, corpo curvilíneo, pele morena, cabelos crespos, lábios finos sem resquícios de batom... Lembro-me de sua postura forte, decidida em frontal contraste com a dura realidade de pessoa negligenciada pelos poderes constituídos. Jamais tivera ela a oportunidade de frequentar qualquer estabelecimento de ensino e assim aprender o be-a-bá, as artimanhas da aritmética, bem como a ler as horas em um relógio.
Em contrapartida, Angelina detinha ideias e raciocínio brilhantes,bagagens estas hauridas em longos anos de privação material, desilusões, e tantas outras provações.
À época dos fatos minha mãe Yvonne ministrava aulas em classes de educação infantil em uma afamada escola paulistana e não poderia prescindir do inestimável auxílio de uma competente secretária do lar para otimizar suas tarefas domésticas cotidianas.
Angelina não só sabia cozinhar ,lavar,passar e engomar roupas com mestria, mas possuía o dom nato de trazer a felicidade ao coração de crianças entristecidas, tímidas e compenetradas como eu...
Quantas foram as vezes em que me senti a mais perfeita das donas de casa ao passar a enceradeira por um dos cantinhos de minha sala?
Havia entre nós muito mais que respeito e consideração próprios da convivência existente entre a empregada e a filha dos patrões. O que de fato permeava este convívio era a amizade, compreensão e cumplicidade.
Vencida pelo cansaço muitas vezes Angelina sentava-se no sofá e pouco a pouco ressonava. Eu ficava sentadinha ao seu lado quietinha assistindo aos desenhos na televisão e nada contava sobre este fato à minha mãe...
Saudosa recordo-me de um dos meus muitos aniversários. Mamãe Yvonne e Angelina embarafustaram-se cozinha adentro a fim de preparem o gostosíssimo pão-de-ló de laranja. Para isso utilizaram a versão dúplice da receita e o bolo então ganhou dois andares, recheio de pêssego e uma cobertura de glacê de limão...
Certa feita almocei por quinze dias ininterruptos um saboroso refogado de carne com legumes variados sobejamente preparado pelas mãos de fada de Angelina. Mal a travessa fumegante chegava à mesa e ato contínuo eu já devorava com gula o prato preferido... Foi preciso adoecer com uma indisposição gástrica para voltar a me alimentar com o trivial...
O tempo passou e eu finalmente adquiri o direito de transpor a fase da educação pré primária mergulhando assim no mundo do conhecimento ao penetrar nas salas de ensino fundamental.
Levantava-me cedo, tomava banho, fazia as tarefas escolares, tomava a refeição e num ápice dirigia-me ao quarto de minha mãe Yvonne.
Postava-me ao lado da penteadeira e punha-me arrumar meus cabelos castanho claros, curtinhos e muito lisos. Nunca consegui desincumbir-
me com presteza de tal mister e para isso chamava por Angelina para ultimar a arrumação. Findo o penteado, ela carinhosamente despedia-se de mim com estas palavras:
_ "Vai" com Deus, Ivoninha!
A meu turno eu lhe respondia:
- Fique você com ELE, Angelina.
Em julho de 1981 fui acometida por uma gravíssima infecção intestinal que prendendo em suas funéreas tenazes quase levou-me a conhecer os mistérios do outro mundo... As dores contínuas,lancinantes e terríveis me eram impeditivas de toda e qualquer tentativa de repouso. Então eu solicitava à Angelina que passasse muitas roupas... Certa ou errada eu havia descoberto um método caseiro que minimizou o meu sofrimento!
Ao colocar as peças de roupas quentíssimas em meu baixo ventre o penar sumia quase por completo eu podia desfrutar a ilusão da melhora...
Como a conduta médica foi exitosa ao quadro clínico apresentado eu me curei, contudo uma nova ameaça à minha recém conquistada saúde me rondava. Uma de minhas amigas de infância (que era também minha vizinha),por ser quatro anos mais jovem do que eu ignorava o perigo de contágio da temida coqueluche. Frustrando a vigilância paterna, a menininha corria à minha casa a fim de me convidar para brincar. Em um destes convites seu corpo todo estremeceu dada a violência do acesso de tosse!
Angelina então aconselha uma viagem para que assim eu pudesse me afastar daquela zona de perigo. Libertas dos agentes patogênicos da tosse comprida eu e minha mãe Yvonne passamos vários dias na casa de meus avós maternos Maria José Ferraz Rocha (Maru) e Eduardo Julio
Rocha em São Carlos,ambos de saudosa memória.
Aos quinze de agosto daquele mesmo ano eu retomo minha rotina
estudantil e para surpresa de alguns sou agraciada com a medalha " Honra ao Mérito" por ter sido a melhor aluna da turma naquele ano letivo.
No final de 1983 Angelina se demite do emprego para resolver problemas familiares, retomando sua função em 1985. No final daquele ano todos somos surpreendidos com a decisão de casamento de Angelina visto que por anos a fio ela manteve-se viúva. O marido possessivo, ciumento,e egoísta não permitiu a ela o exercício de nenhuma atividade laboral. Nunca mais volataria a revê-la.
As notícias sobre ela eram esparsas e desencontradas, mas no início da década de noventa tomei ciência acerca de seu falecimento.
Uma grande tristeza tomou minha alma e coração. Jamais voltaria a vê-la rezar manuseando plantas e invocando ao mesmo tempo o nome de deuses da distante África de seus antepassados e nem tampouco falando ditos populares engraçados...
Sempre digo à minha mãe Yvonne que quando fizer a passagem quero dar um abraço afetuoso em Angelina...
Angelina, você foi uma das pessoas que mais gostei de conhecer em minha vida...
Nunca sua existência difícil, por vezes pesarosa constituiu-se em motivação para desídia, maus tratos, ou qualquer outra espécie de revanchismo. Você soube aquilatar a bondade de minha mãe Yvonne e de meu pai Ramon ("in memoriam")e reconhecer em mim uma criança meiga, dependente e indefesa...
Os dias sobressaltados voaram com a velocidade dos cavalos alados e eu agora conto com quarenta anos... Trabalho fora, advogo, escrevo nas horas vagas, mas em determinados momentos sinto-me criança novamente...
Pareço ouvi-la dizer:
_ "Vai" com Deus, Ivoninha!
E eu daqui lhe respondo!
_ Fique para sempre com Ele,minha querida amiga!