A BARRIGUDA NA PRAIA
Como a natureza é bela: praia, calor, sol, árvores e gente sarada! Pois bem, eis que hoje o verão faz outro. Repare como a natureza é mais estereotipada que o abacaxi do Chacrinha: quem disse que gente malhada é da natureza?
Nada atenta tanto quanto olhos despreparados: caso haja beleza naquilo que o biquíni envolve, o verão é quente. Caso o biquíni seja mais interessante que o recheio, caímos então no inverno das coisas. Há uma canção na memória brega da gente que diz: ‘é minha cara, mudei minha cara, mas por dentro eu não mudo’, e como é preciso o dizer brega neste momento: ficou cafona valorizar o que somos, ficou presente destacar o que temos. Taí a importância do recheio. Ou do biquíni.
Não, Moacyr Franco – o autor da canção brega acima – não caiu em cafonice. Ao contrário! Visionou como bom sábio, o que se pode traduzir como 'dê valor ao que sou, a minha maquilagem é só um traço, não cubra a estrutura na qual me firmo. É dela que você precisa'. Lembro-me dos empolgados e produtivos debates: forma e estrutura. Lembro-me das matérias de filosofia, lembro-me das aulas do João Quartim. Lembro que também tenho desejos com biquínis e com seus recheios, lembro que também sou filho de criação do lobo. Lembro que na hora da fome extrema é bem aceitável apelar para a carniça. E assim vamo-nos, lembrando, acomodando, moldando, aceitando, impondo, alimentado – adivinha de que tipo de refeição falamos?
Quando é verão o mar atrai bastante gente. O mar funciona aqui – e sempre, talvez – como um fim do nosso limite terrestre e a possibilidade de integrar ou dominar um espaço inóspito, mas nosso, pois é do nosso planeta, propriedade nossa. É o além do limite sem riscos, com o prazer natural de estar na água, refrescar, a nossa realidade ter cara de verão. E fazem parte também da cara de verão os corpos prontos para o verão. Quer causar um dano momentâneo a alguém inusitado? Faça pose de pesquisador do IBGE e, na praia, ao sol do meio dia, pergunte a quem de corpo nitidamente sarado: ‘você considera que o seu corpo está de fato preparado para o verão’? O mar atrai também a atenção tradicional, já que se trata de um espaço cujos costumes mais rançosos despertam, porém através de outro veneno moral: não é possível condenar a ninguém na praia pelas parcas vestes. Mas é condicional que o corpo esteja com a cara do verão.
O corpo delas, claro. Pois o ranço dos costumes costuma afetar a fala de quem já é raso com os dizeres. Imagine que a tendência se deu e a resposta à sua pesquisa veio acompanhada de uma surpresa. A pessoa de corpo sarado na praia ao sol do meio dia ficou assustada pela sua pergunta, a ponto de dizer que ainda não estava no ponto. Percebe que pareceu acusação? Percebe que o corpo dessa pessoa estava realmente com a cara do verão? Percebe que o padrão é uma meta inalcançável? Ocorre que a mulher, no passar de uns seis mil anos, foi um recheio. Não no sentido de separar forma de conteúdo, mas com a forma já segregada ao conteúdo. Será que Fernando Henrique Cardoso, Lula, Barack Obama, Fidel Castro, George Bush ou Tony Blair foram ridicularizados por exibirem barriga saliente numa praia de verão? Dilma Rousseff foi. Será que Tony Ramos, Delfim Neto, Carlos Massa, Jô Soares e Sidney Magal seriam zombados por conta das dobras acima do culote durante o verão? A Regina Casé outro dia foi. Demi Moore também foi. Até Demi Moore. Outro dia, num festival de cinema em Paulínia, lá estavam, belíssimas, Rita Guedes e uma dúzia de atrizes sucesso-anos-noventa. Um senhor insistia, ‘ela não é mais a mesma! ela não é mais a mesma! eu ainda tenho a Playboy dela!’. Após vinte anos, ela não é mais a mesma, mesmo. Ainda bem. Está ainda mais bela, os anos ali foram generosos. Mas o senhor ainda é o mesmo. O mesmo que coleciona mulheres em suas fantasias, mulheres com aspecto de recheio. O mesmo que há vinte anos figura a mulher através do que cabe à página saliente da revista.
O fato de uma mulher ser bela é esteticamente uma virtude. O fato de uma mulher não ser bela jamais deveria lhe pesar a falta desta virtude, peso em vão – a beleza está nos olhos de quem vê, no teor de quem sente, nas palavras de quem se toca, nos desejos que inventamos, no afeto que nos falta, no mesmo afeto quando nos sobra, nas medidas incabíveis do que esperamos.
A beleza está nos ímpares que nos completam.
Beleza também está em não fazer mal a ninguém. Mal é aquilo que, voluntariamente, afeta ao alheio.
Enjeitamos a nossa natureza de fato – humana – e nos cobrimos de quem não podemos ser. E como sabemos que o modelo não serve, façamos da mulher cobaia, pois o instinto é que estará à prova. A filantropia do Caldeirão do Huck ilude menos do que aquilo que temos tratado como natural. Há uns seis mil anos queremos ser desencantados com o que poderíamos nos ter por liberdade plena, há uns seis mil anos nenhum ranço quis saber de tratar a dor como dor. É fato da história: quem se apodera de algo quer sepultar a liberdade.
O natural é estar feliz. O natural é ver no mar a natureza e nele se envolver. O natural é gostar de uma mulher caso se goste de mulher, pelo único e irrestrito falo de ser mulher e poder ser aquilo que lhe completa os sentidos e a imaginação. A beleza é natural. O estereótipo é empolado. Acostume-se com a forma, e prepare o conteúdo: nenhum recheio tem cara de verão. Jamais teria vergonha do meu corpo, feito que ele esteja totalmente posto fora da vaidade, e sei que por ser homem a mim me favorece propor esse despudor. Mas fosse mulher e creio que me rebateria e pararia por aí – estaria menos obediente ainda! Preocupa-me mais a queda com a patinete do Walker Bush, não por ele ser homem, do que o corpo da presidente, não por ela ser mulher. Preocupa-nos estar preso em mais ou menos seis mil anos. Mesmo assim, que claro fique: ninguém aqui propõe que corpos definidos sejam limitados. Ao contrário: corpos são corpos. Mas não paradigmas.
A estrutura também está na percepção. Esta sempre será quem define a forma.
Que saudade das aulas do Quartim.