"Atar as duas pontas da vida."

 
Quem sou eu para citar Machado? Porém, como ele disse “é impossível restaurar na velhice a adolescência” ou “o que fui ou foi”. Atrevo-me a citar esse raro escritor, ao olhar para trás e lembrar da história de uma menina, cujo tempo , em meio às lutas travadas, ao desgaste do tempo, à dor da traição e à raiz da ingratidão, fala de outra época cuja fé a impelia sem parar a fazer melhor. Seu compromisso com a vida era tal que seus olhos escuros eram pontos de luz que convidavam a voar bem alto, nas asas do sonho. Pode ser que a ninguém interesse esta história. Nada há de mal, porém, em resgatar a imagem daquela alegria, pura e simples como é a vida quando somos felizes.
Por esse tempo, era ainda quase adolescente. Andava por longes terras. Atravessava vales, entre verdes montanhas. Quando anoitecia, pela ausência de luz elétrica, restava-lhe, como ponto orientador, uma casa, em verdade, um casebre no alto de uma dessas “serras”. Aquele ponto de luz era a sua certeza de que estava no rumo certo, em direção ao lar. Altos pinheiros inclinavam-se e a viam - tão pequena e frágil – sem perder o rumo, a cantarolar em um caminho perigoso, pois, naqueles ermos, havia animais ferozes.
O véu da noite se aprofundava. Vinha a chuva. Às vezes a neve. Ela continuava, embora pouco agasalhada. Sempre guiada por aquela luz, hoje perdida naquele canto do mundo,e que, por certo, não mais existe. Mas, o perfume das flores que trazia no avental repleto delas anunciava sua presença, ao chegar a seu “castelo”. Os ramos verdes que colhia pelo caminho espargiam no ar a fluidez da alegria que a trazia. O alecrim era seu preferido e o aroma a embalava, esquecida de qualquer cansaço. O cheiro do pão no forno de lenha já a alimentava e o tapete branco - tecido pela neve – a recebia como princesa que, na época queria ser, mas com tal simplicidade, que sua coroa real só era vista por Deus, já que trajada de maneira humilde. No limiar da vida, ela semeava o mais puro amor, dando boas-vindas a todas as cores e bênçãos que podia colher.
Muitos e muitos anos se passaram. Décadas. Ainda existe a garota. Em pleno século XXI, desprovida dos encantamentos e encantos de outrora (agora, talvez tenha ouros), ela - agora na velhice – também se dirige a “seu castelo” que, aliás, nada tem para assim ser chamado. Nele, porém, há uma luz sempre acesa, porque, ao sair , não raro antes das seis, assim a deixa para os dois habitantes caninos e, talvez, para “fingir” que há alguém em casa ao chegar. Parece que, desse modo, não mergulha nas sombras, quando ali entra. A casa dela não é triste. É feita de silêncio. Silêncio tão eloqüente que se faz mais forte , até mesmo quando coloca um CD para embelezar de música aquele recanto, pois aprendeu que a paz é o melhor, mesmo que o desafio da solidão persista. Mas, ela sabe que – segundo a lenda – ninguém está só. Sê o silêncio se faz substância é porque os anjos estão à nossa volta. Alem disso, os “ beijos” de seus fiéis companheiros, são um quê lhe dão aconchego.
Repentinamente, ela lembra a voz cristalina com que chegava à outra casa, na qual reinavam a esperança e o contentamento , sem limitações. Luz e perfume eram a moldura de sua vida. Mas, com infinita consolação, por qualquer lugar da casa em que agora está, multiplica-se a sua alegria, desdobrando-se no registro da vida por prisma diferente. Cada momento é gratificante. Nesse manancial de reflexões, vitoriosa, ela percebe como é impossível, de fato, atar as duas pontas da vida. Não se volta ao que se foi , Não importa. Não deve existir estreiteza diante da nova fase, É sempre tempo de travessias, mesmo que à margem de nós mesmos. É preciso carregar no coração uma dose muito...muito grande de perdão. Assim, aquele ponto de luz se agiganta.








 
Luandro
Enviado por Luandro em 05/01/2014
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