Por aí

Naquela manhã pouca coisa fazia sentido. Estava com os olhos inchados de tanto chorar. Buscava em meio ao seu passado um pedaço de história que pudesse preencher a insegurança e o vazio que tomavam conta de seu peito. Há vinte anos seguia a mesma rotina. Amanhecia emaranhada com as pernas dele ao seu redor. Levantava da cama com cuidado para não fazer barulho para acordá-lo. Descia silenciosamente pelas escadas e preparava o seu café. Quando ele ia ao seu encontro a mesa encontrava-se pronta e ali sentavam para conversar sobre os filhos e a rotina. Naquela manhã ele não estava mais ali. Havia saído a pedido dela. Não só da casa, mas também de sua vida. Não fazia bem. Não era sincero. Não trazia aconchego. Aquele amor juvenil se perdeu. Não havia cumplicidade, companheirismo. Eram obrigações e uma vida atribulada na rotina. Enquanto pegava uma xícara de chá se lembrava com os olhos marejados as tantas vezes que a fizera sorrir. Ele era especial. Conheceram-se ainda jovens e em menos de seis meses ela estava grávida. Do namoro pularam para o casamento e para a vida a dois. O debaixo do mesmo teto era cruel. Os sonhos de menina se perderam diante do corredor da maternidade, e ele não estava pronto para dar conta de todas as responsabilidades que a vida o fazia engolir a seco. Tudo acontecera rápido demais. Casamento, filho pequeno e uma empresa para tocar. Não havia tempo de sentar para conversar, de planejar... a vida seguiu como o curso de um rio. Não havia expectativas, projetos para serem divididos. Era trabalho, casa e cuidar do filho que crescia. Ela abandonou a faculdade para ser dona de casa. Abdicou o seu tempo para cuidar das suas novas funções: lavar, passar, cozinhar, cuidar de uma casa e de sua família. Falando assim, parece que se livrara de um peso, nada lhe fazia sorrir. Naquela manhã ela fez a mais dolorosa das descobertas: nunca o havia amado. Ele era personagem principal de sua vida de amor, mais nada. Não havia vontade de estar perto, de sair, ir ao cinema. Não eram amigos, poxa vida. Ele não sabia sua cor preferida, não sabia que orquídeas lhe agradavam, nem tampouco percebia que em quase vinte anos de casados, ela fora ruiva, loira e morena. Vivia fechado em seu mundo e pouco havia de espaço para ela. Naquela manhã ficou engasgada com a vontade de vê-lo outra vez. De sentir um friozinho que fosse na espinha. Mas nada fazia sentido.

Marcely Pieroni Gastaldi
Enviado por Marcely Pieroni Gastaldi em 19/08/2013
Código do texto: T4442137
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.