DE MUITO PERTO

Ontem tive o privilégio de presenciar uma cena que beirava o indescritível (e espero que esta seja a prova de que eu mesmo estava errado). Não permiti-me capturar a foto, pois não ousei desgrudar os olhos daquela cena, como se a pudesse perder no segundo do ocaso, ou como se a luz profana da câmera pudesse violar a pureza daquilo que era belo, simplesmente por não ter a pretensão de sê-lo. Talvez, neste caso, as palavras possam ter mais valor para registrar aquilo que não pode ser perdido.

Todos os dias no caminho do trabalho, passo ao lado de um curioso lar, que sempre me chamou muito a atenção. Um peculiar morador de rua vive ali em sua pequena kitnet de paredes de plástico e madeira molhada, com fácil acesso à pequena panela amassada em sua cozinha modular (de vista panorâmica para o céu) e rodeado por um pequeno jardim de inverno (com justiça, afinal, nunca fez tanto frio na cidade). Ali se encontra todos os dias, invariavelmente, em companhia de três parceiros bastante notáveis: um trio de simpáticos cachorrinhos, de espírito muito animado, com os quais divide o lar, como, na mais razoável das hipóteses, deve dividir uma família. Cuida deles, enquanto pulam divertidos, alimentando-os, compartilhando a coberta ou batendo papo horas a fio. Conversas tão animadas, como talvez jamais tenha visto (desde que com a mesma sinceridade).

Ao passar distraído pelo usual trajeto diário, depois de um dia bastante cheio, quase fiz-me alheio à cena que ali se deu. Um pequeno homem, de sete ou oito anos de idade que, deixando à sua mãe a tarefa mais efêmera de conferir o número dos ônibus que passavam pelo ponto, versava alegremente com aquele senhor, enquanto, em sua pose de homem vivido, postura ereta, confiante e cheio de si, afagava docilmente a cabeça de um dos cães. Pareciam discutir as implicações sociais das últimas manifestações na cidade, as razões da inflação automotiva, a alimentação saudável em rotinas angustiantes ou filosofia contemporânea. Confesso que passou por minha cabeça, também, que talvez estivesse o garoto, em seu entusiasmo, apenas puxando assunto sobre aqueles cachorros tão interessantes, perguntando seus nomes ou o que comiam, mas não tive coragem de aproximar-me e estragar a magia de momento tão raro quanto perecível na película do tempo.

O que vi foi uma criança desprovida de preconceitos e completamente nua dos julgamentos da sapiência, interagindo concretamente com aquele que, para ele, era uma pessoa extremamente invejável, um ser livre e descapitalizado das inúmeras regras diárias, sem lição de casa ou hora para dormir. Enxergava, eufórico, um sublime herói, e não uma pessoa, por razões tão confusas quanto difusas, posta a margem da sociedade. Não duvidava, nem por um instante, que este merecia os maiores direitos do mundo, pois a ele era dada a dádiva que não é concedida aos homens que desejam, mas apenas aos que merecem: uma belíssima e verdadeira amizade.

Foi neste dia que vi enfim, de muito perto, aquilo que chamam de esperança.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 02/08/2013
Código do texto: T4416905
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.