Uma noite, uma vida
Era tarde da noite, não tinha lá muitas coisas para fazer. O frio de São Paulo me cobria o peito e fazia de mim parte de seu vento. De casa em casa, meu pensamento ia: "O que será que os outros estão fazendo?". Nada. A cidade que nunca para estava parada. De certo, eu era o único acordado e não queria mais acordado estar, mas toda vez que me punha a deitar, algo me fazia levantar. Inquieto. O lençol me parecia áspero e talvez realmente fosse. Os olhos, quando iam se rendendo ao cansaço, como por um último suspiro, se abriam. Decidi-me não mais brigar e enfim, levantei-me. Fui à cozinha, peguei meu livro, preparei um café - que por sinal ousou baforar em meus óculos por inúmeras vezes - e se não fosse madrugada, ligaria meu vinil e escutaria tudo o que pudesse. Sentei-me na poltrona da sala de estar. E fiz lá o que se espera da sala de estar: estive. Estive pelo resto da noite. O sol ia me aparecendo sutilmente e o dia com ele também vinha surgindo. E com o dia, as minhas obrigações... Precisava ir para o trabalho, mas como? Criei coragem e olhei-me no espelho. Creia, caro leitor, eu tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada, tal como Capitu. Tomei um banho, arrumei-me e sai. Nas ruas, cruzei com pessoas que nunca vi antes, mesmo passando por lá todos os dias nos últimos anos. E só, então, pensei: quantas destas pessoas também escondem o que estão passando colocando um sorriso no rosto?