DA NECESSIDADE DE SE CONFESSAR O AMOR ÀS MUSAS
Gosto de peregrinar pelo vocábulo, apreender novas expressões, descobrir outros sentidos para os termos conhecidos, sobrestar frases até que a palavra acurada surja, ou mostre-se desnecessária, como nos contos de Gogol.
Esse gosto pelo vocabulário não é só meu, nem só dos filólogos, nem só dos literatos, é de quem fala, é de quem ouve... principalmente de quem quer ouvir e falar e contar suas histórias.
Trabalhei em uma empresa, autarquia publica responsável pelo transporte urbano, em que um diretor apreciava novos termos, e vivia a repeti-los. Ao ser apresentado à palavra “informal”, foi amor imediato. E era um tal de almoço informal, conversas informais, até que em uma reunião para tratar diretrizes de um projeto de lei de transporte, após vários interlocutores se expressarem, o mencionado diretor se pronuncia: “não vou opinar sobre as questões técnicas, mas em minha opinião temos de fazer uma lei informal”!!!!!!!!
Já outras palavras, ficamos reticentes em adotá-las... neófito... adoro esse termo, gostaria de ser conhecido como Carlos, o neófito... mas ser principiante a vida toda? Em alguns casos é até atrativo, como no amor, que quando novo é paixão; na poesia, em que o espanto é quem cria... porém em geral a denominação de neófito é pejorativa, como li de um crítico de arte sobre uma exposição: “até mesmo os neófitos conseguirão entender”. Melhor ser Carlos, o poeta, neófito ou encanecido, ninguém vai atrás da simbologia do termo.
Quando falamos de palavras novas, é automático pensar em neologismos... então aqui vai um: misomusia.
Que palavra linda, remete à música, poesia, só pode deixar de admirá-la o misoneísta... ou quem lhe conhece a definição, dada pelo seu criador, o escritor e ensaísta checo Milan Kundera – aquele de A Insustentável Leveza do Ser, mas também aquele de Risíveis Amores, ele que acha fundamental o humor:
Misomusia é a aversão às musas, o desprezo pelas tradições artísticas, é o fazer e não o criar, são as regras impostas pelo mercado e não pelo estilo, é produção e não arte.
Na semana passada visitei Leminski no MON, lá em Curitiba. Parei sob o painel daquele seu haikai:
entro e saio
dentro
é só ensaio
Quando, anos atrás, tive a pretensão de escrever haikai fui me aprofundar na forma, conhecer as regras e as obras, e nessas li esse do poeta curitibano. Desisti, jamais me caberá inspiração suficiente para escrever um haikai com tamanha sensibilidade, profundidade e precisão. E não vou escrever versos conectados em três linhas (isso eu poderia) e chamá-los de haikai, somente porque esse estilo virou moda, isso não seria obra, seria misomusia.
Essa humildade, que ajuda a manter o foco em trabalhar à exaustão para ter elementos poéticos prolíficos e ricos, para que quando surja o espanto, ou a musa desnuda, a poesia se faça, não cabe ao misomuso, ele se afasta da vanguarda, da retaguarda, ele se posiciona no meio das atenções, longe arte.
No ensaio A Arte da Novela, Kundera define assim o misomuso: "não ter sentido para a arte não é grave. Pode-se não ler Proust, não ouvir Schubert e viver em paz. Mas o misomuso não vive em paz. Ele se sente humilhado pela existência de uma coisa que o ultrapassa, e a odeia".
Musas, ninfas, sonhos, venham e nos rodeiem e enlacem e dancem e façam sorrir os apolíneos e o dionisíacos; façam os cantores gritarem, os atores girarem, os pintores se lambuzarem, os protugueses navegarem, os poetas nascerem do tamanho de sua poesia. E no primeiro dia, e em todos os dias da evolução, se diga: faça-se a arte.
Haveria o devenir sempre ser de evolução, o misomuso deveria estar extinto antes de existir, mas ele está por aí, e faz-se necessário combatê-lo, não com rifles e granadas, e sim com o suspiro da amada, com a prosa a rima o paradoxo, seguir Cervantes e Saramago, e Pessoa, ter sempre à mão um papel branco, porque ouvi de uma musa que seria sempre ela quem iluminaria esse papel para que eu pudesse escrever, e assim ser poeta.
Musa, musica, magia, poesia... a arte nossa de cada dia, a filomusia...