A PASCOA DA DÉCADA DE SETENTA
Nós comíamos bredo e traíra comprada a Zé Carnaíba ou a Vigó. Quando o dinheiro era magro, meu pai pegava a tarrafa e ia pescar corró no Açude Novo. Se o inverno era bom, meu velho se enterrava entre as grotas do sangradouro do Jatobá e voltava de lá com o balaio cheio. Dona Emília preparava os corrós no coco ou então torrava no caco. A meninada fazia a festa. Naquele tempo a gente jejuava comendo.
A Semana Santa começava mesmo na quarta-feira, mas o dia de reverência era a sexta, data em que Nosso Senhor morreria pelas mãos brutais dos romanos e sob a inspiração dos judeus. Nós odiávamos os matadores de Cristo. Nessa época vendia como banana em meio de feira o romance "Judeu Errante", que era um cordel de autor desconhecido, mas que falava da história de um judeu amaldiçoado, condenado a bater perna pelo mundo até o fim dos dias como castigo pelos castigos impostos ao Nosso Senhor.
A Procissão do Senhor Morto acontecia à tarde. Procissão grande, enorme. Duas filas de fiéis saíam pelas principais ruas da cidade e, ao fundo, os fiéis mais ilustre carregavam o ataúde onde Jesus jazia, morto, de mãos cruzadas como um defunto comum. As mulheres choravam à sua passagem. O som da matraca - uma tábua com um pedaço de ferro que nela batia produzindo um ruído fúnebre - , deixava a meninada com o coração pulsando. Na sexta feira da paixão o sino da igreja de Princesa emudecia em sinal de pesar ao ilustre morto. Dão Mandu, o sacristão, trocava o trinado do bronze pelo bate-bate seco da matraca.
Na sexta-feira da Paixão nem banho o povo tomava, senão quebrava o encanto. Quem desobedecesse, morria entrevado. Era um castigo. Mas o maior dele era passar até uma da tarde sem botar uma mariola na boca. Era jejum fechado. Minha mãe fiscalizava os meninos para evitar o castigo divino em caso de desobediência.Mas depois abria as panelas e a gente mergulhava com gosto naquele mundo cheiroso de bredo, peixe, pirão, arroz do Piancó e feijão verde colhido na roça que ficava perto.
Se a sexta era tristonha por causa da morte de Cristo, o sábado era só alegria. Jesus ressuscitava sob os vivas da população e o povo se vingava do Judas traidor, rasgando um boneco de palha e pano que Pedro Fogueteiro pendurava num pau. O boneco ficava pendurado de véspera, sob os olhares gulosos da meninada, que ansiava pelos bombons, chicletes e pirulitos com os quais era recheado. Pedro o minava de explosivos. Na hora da onça beber água, as bombas explodiam e voava pedaço de boneco para tudo quanto é canto. Boneco voando e pirulito acompanhando e meninos correndo, na gritaria própria da infância, catando as balas pelo chão de barro do nosso Cancão de eternas saudades.
De noite, festa. Forró nas esquinas, nas bibocas, no cabaré de Estrela, onde as putas, até então com os xibius trancados em sinal de respeito ao Senhor, retiravam as tramelas e permitiam que emburacassem nas grutas úmidas dos seus segredos os amantes famintos e cansados de tanto jejum.
Na velha Lagoa da Perdição, as matutas do Brejo, de Entremontes, da Lagoa da Fazenda, da Várzea e do Gavião, tiravam a virgindade dos adolescentes em flor que, ali, arrancavam as pétalas de suas inocências entre as coxas cheirando a mato verde das cabrochas da roça.
RELATADO POR TIÃO LUCENA FILHO DE PRINCESA ISABEL