O Teólogo e o Santo
É uma lástima que o estudar e o fazer Teologia nem sempre produza santidade...
Certa noite, eu tive um sonho inusitado. Sonhei que estava morto e fui transportado à entrada do céu. Chegando lá, pus-me a observar o local, sem adentrar o recinto principal. Vi que lá havia uma escada semelhante àquela sonhada por Jacó. Nesta escada os anjos subiam e desciam sempre muito apressados em levar aos homens as graças fornecidas por Deus para o bom êxito da missão que nos é confiada ao nascermos, a saber: fazer o Reino de Deus acontecer onde quer que nos encontremos e, ao término de nossa peregrinação terrestre, encontrarmo-nos face a face com aquele que nos chamou à vida. E lá estava eu no portão do céu onírico...
Do outro lado das grades que cercavam o paraíso, eu consegui ver alguns santos. Dentre estes estava o meu querido Patriarca São Francisco de Assis, juntamente com alguns de seus melhores companheiros, tais como: Frei Egídio de Assis, pobre camponês analfabeto e rude, que com a doçura de suas palavras calava os homens mais doutos de sua época. Vi também São Boaventura de Bagnorégio, o grande Ministro Geral da Ordem dos Menores, que conseguiu unir em si a sabedoria e humildade; e o ilustre pregador do Evangelho e protetor dos pobres, Santo Antonio do mundo inteiro. Na portaria, recebendo as pessoas, que a toda hora chegavam, estava São Pedro. Tudo nele fazia lembrar um bom ministro do acolhimento. Ele tinha um jeito bonachão, com um sorriso expansivo e um rosto afável. Todos que chegavam à porta do céu se sentiam à vontade diante do santo. Este, por sua vez, acolhia sorridente aos que se aproximavam da entrada, perguntava-lhes o nome e conferia se a graça anunciada estava escrita no Livro da Vida. Para aqueles que tinham seus nomes inscritos no Livro, ele abria o portão e, com o rosto transbordante de alegria, apresentava-lhes aos demais santos que já se encontravam gozando da bem-aventurança eterna. Porém, àqueles que não tinham seus nomes grafados no Livro, o santo transmitia-lhes a notícia com os olhos pesados de lágrimas. Afinal, o céu não se alegra com a perdição de ninguém.
Eu continuava lá, parado e fascinado a contemplar esta cena. Lá pelas tantas, vi surgir um ilustre teólogo na porta do céu. Fiquei espantado, afinal eu não sabia que acabara de falecer aquele homem muito requisitado e lido aqui na terra. Como todos que chegavam à antecâmara, o sábio homem bateu na portinhola e São Pedro, com o sorriso de sempre, indagou-lhe o nome. O recém chegado disse a sua alcunha com aquele sorriso sarcástico típico daqueles que cantam a vitória antes do tempo. Após dar uma olhada no livro, o santo disse-lhe que o seu nome não se encontrava ali e que infelizmente o dito estudioso não poderia adentrar o céu. Ao ouvir isto, o doutor em Teologia protestou e vomitou em cima do Primeiro Papa da Igreja Católica o seu curriculum com um número infindável de títulos e cursos que ele ministrara em vida. Além disso, o professor de Ciências Sagradas fez questão de citar um a um os livros que publicara em vários idiomas enquanto vivia na terra. Disse ainda, ao santo, que uma pessoa como ele deveria ser bem recebida no céu. Afinal, poucos homens, com a idade dele, já tinham tornado as suas teses tema de dissertações de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Ou ainda, tiveram boa parte das obras lida por Papas, citada por bispos, pregada por padres e aclamada pelo povo. E São Pedro, com o rosto sempre alegre, ouvia pacientemente tudo aquilo que o teólogo lhe expunha.
Quando o iluminado estudioso acabou de rezar a sua pomposa ladainha, o santo apóstolo pediu-lhe educadamente a palavra. Então, o detentor das chaves do céu falou que, de fato, conhecia o distinto erudito e que, inclusive, acompanhou a sua trajetória da janelinha do céu que se abre para a terra. Disse também que poucos homens no mundo tinham o dom de falar e escrever tão bem quanto aquele teólogo e que os escritos do referido autor eram de causar inveja e de deixar boquiabertos os mais inspirados hagiógrafos. Ao ouvir estas palavras, o sábio doutor inchou o peito de orgulho. E o santo continuou o seu discurso afirmando que, desde os tempos apostólicos, ainda não tinha visto uma pessoa ser canal do Espírito Santo como o seu interlocutor. Pois, este tinha uma palavra clara e acertada acerca do mistério amoroso de Deus. Elogiou o fato de o intelectual ter conseguido a façanha de ser entendido pelos doutos e pelos simples. São Pedro ainda lembrou-lhe das pregações que fizera e que deixavam as pessoas extasiadas e sedentas de se encontrarem com Deus. “Verdadeiramente”, exclamou o santo,”tu eras o máximo!” Ao ouvir estas palavras, o recém falecido exclamou: “Se é assim, então, deixe-me entrar logo no céu!”
São Pedro, porém, respondeu-lhe: “De fato, ao falar para os outros ou ao aprender para passar para os ensinamentos, tu eras o máximo. Entretanto, quando a questão se referia a ti mesmo, acabaste deixando muito a desejar. Passastes a vida falando para os outros, mas nunca ouvistes a ti mesmo. Sempre escrevestes para os outros, porém, nunca te destes a oportunidade de ler a ti mesmo. Ensinaste muito aos outros e nunca aprendeste de ti. O teu fazer era motivado pelo orgulho e não pela caridade. A tua ação para e pelos outros não era reflexo do teu fazer em ti e para ti. Tu não integraste na Teologia da tua vida, ou na tua existência teológica, a teoria e a prática; a Teologia e a vida; o saber e o fazer. Contemplaste mas não assumiste e, deste modo, não viveste a opção e a atitude fundamental de Jesus Cristo. Tu viste, achaste belo, chamastes os outros para também ver, porém não quiseste te tornares o que contemplaste. Infelizmente, a tua Teologia não produziu em ti a santidade desejada por Deus. Oxalá que, ao te olhar, os outros aprendam e a tua Teologia produza santidade neles”.
Nesta hora, o homem começou a cair em si e perceber que o talento que lhe fora dado não foi multiplicado, como pensara estar fazendo, mas verdadeiramente fora enterrado no pântano de suas vaidades... E, antes de ouvir o choro e ranger dos dentes, o meu relógio despertou, eu acordei e me veio o seguinte pensamento: “Quem nos fará ver a felicidade?”