UMA ALMA PENADA NA BALADA

Noite de calor, muitas pessoas se aglomeravam na lanchonete do Jaime em frente à praça da pequena cidade de Bálsamo, interior de São Paulo.

Em uma mesa, cinco rapazes da cidade vizinha de Neves Paulista e junto a eles estava Chumbinho, uma figura popular em toda a cidade, barba sempre por fazer, chapeuzinho de couro jogado de um lado da cabeça, tipo misterioso, quase sempre com um copo da branquinha por perto, mais conhecido ultimamente por sua loucura momentânea, uma mania macabra que o assolava quase todas as noites, faça chuva ou céu estrelado – pulava o muro do cemitério para dormir em cima do túmulo do seu querido pai. Uma perda não aceita por sua mente já um pouco perturbada pela “malvada pinga”. E esta excentricidade já se estendia por mais de um ano, a partir da data do sepultamento do seu adorado pai.

Os rapazes como todos os guris de cidade pequena, faziam suas excursões pra balada todos os finais de semana, de uma forma econômica, enchiam o carro de amigos e rachavam o combustível. Escolhiam uma cidade para cutucar os corações das meninas e pronto, pé na estrada. Saíam à caça em busca de "carne nova" em outras cidades ou pelo menos saíam com esta romanesca intenção, mas raramente conquistavam algum rabo de saia, e acabavam mesmo tomando todas em algum boteco, indo embora no final da noite com cara de tacho e bêbados como uma vaca parida e o que é pior...sem comer ninguém.

Lá na Lanchonete do Jaime conheceram o caricato Chumbinho, cara interessante para uma rodada de bar, cheio de histórias envolventes que tiravam o riso fácil de sujeitos já curtidos pelo álcool. Beberam, cantaram, gargalharam a noite inteira, até que lá pelas três da madrugada, um deles, o mais sóbrio, deu a dica: “- Vamos embora cambada?! Já tá tarde, meu carro não está muito bom pra pegar a pista, por isto temos que pegar um atalho pela estrada de terra. Todos concordaram, pagaram a conta, inclusive a parte do novo amigo Chumbinho e saíram.

Chumbinho soltou um resmungo arranhado e cambaleante:

“-Ick, mee dêemm ummaa caroonnaaa. Ick, ick.

E saíram todos naquela Brasília velha. Cinco aventureiros e um cara alucinado e enigmático no colo de um deles, não por nenhuma bichice mas por super lotação mesmo, afinal de contas era uma carona rápida, e qualquer desconforto era melhor do que andar naquele estado de embriaguez. E seguiram o caminho de casa, os cinco bêbados e um

delirante amigo.

-E aí Chumbinho, onde você mora?

-Mais pra frente, mais pra frente...

-E aí Chumba a cidade já tá acabando...

-Mais, mais pra frente...

-Tá chegando no cemitério, aí acaba a cidade...você mora no sítio Chumba?

-Não, na cidade...tá chegando...CHEGOU! PARA, PARA AQUI!

Para surpresa dos assustados e embriagados amigos, o seu novo companheiro desceu na frente do cemitério da cidade. Saiu sem se despedir e sem olhar pra trás, num salto só, pulou o muro e sumiu na escuridão daquele sombrio campo santo. Encabulados com o que acabaram de presenciar, saíram todos do carro para olhar por sobre o muro e para assombro total, viram o seu novo amigo deitado sobre um túmulo, ao lado de flores de plástico e tocos de velas ainda acesas.

Não houve coração que não disparasse a galope, nem perna que não bambeasse com aquela visão fúnebre e fora do comum. Com a pulga atrás de suas orelhas e a secura em suas bocas, não podiam ir embora sem antes desvendarem este mistério. Voltaram para o cenário que antecedera aquele episódio sinistro e macabro que acabaram de ver. Voltaram à lanchonete do Jaime.

Lá chegando já desceram brancos e quase sem fôlego, atropelando as palavras começaram o sombrio relato:

-Jaime, Jaime, você viu aquele cara que estava aqui sentado com a gente?

-Cara, que cara?

-Rapaz, um cara com um chapeuzinho de couro, barbudinho, ele bebeu com a gente a noite inteira.

-Bebeu? Barbudinho? E o que tem ele?

-É que ele nos pediu uma carona e nos fez parar em frente ao cemitério, desceu do carro, pulou o muro e foi dormir em cima de um túmulo...

-Um cara com um chapeuzinho de couro? Jaime respondeu cinicamente. Sem dúvida tinha visto, porém melhor perder o freguês do que uma grande piada, continuou...

-Rapaz, eu vi vocês a noite toda aí bebendo, mas não vi ninguém com estas características sentado com vocês não. Qual é o nome dele? Vocês têm certeza que é morador daqui?

-Ele disse que é Chumbinho. É isto mesmo, CHUM-BI-NHO.

-O quê?! Vocês estão malucos, sinceramente, acho que beberam demais...o único Chumbinho com estas características que eu conheço, aliás conheci...já morreu há mais de 10 anos e tá enterrado neste cemitério em uma cova perto de uma árvore sete copas (exatamente o local onde estava enterrado o pai do Chumbinho).

E Jaime continua aquela dissimulação digna de ganhar um Oscar, com semblante sério finge recordar, gesticula sem parar a fim de melhor convencê-los:

-Morte matada, sangue pra todo lado, foi feio de se ver... cinco tiros pelas costas, uma covardia só. Judiação, uma malvadeza com alguém tão bonzinho, amigo de todo mundo...mataram ele justo onde vocês estavam sentados hoje. Bem alí (e apontou sem vacilar o local do suposto homicídio). Coitado do Chumba, rapaz de ouro, que Deus o tenha em bons lençóis...

Quase que na mesma hora, um coro uníssono saiu das bocas trêmulas e gaguejantes dos cinco amigos assombrados:

-MO-MOMO-MORREU?!!!!

-Cruz credo, o homem tá morto moçada!

-Caramba, nós bebemos a noite inteira com uma alma penada...eu tô todo arrepiado.

-Minha Nossa Senhora da Aparecida, eu quero a minha mãe.

-E agora?! Como vamos embora pra casa neste escuro?

-Acho melhor esperar amanhecer, eu não passo na frente daquele cemitério neste escuro nem por todo dinheiro do mundo.

E foi assim que os cinco amigos esperaram impacientemente o clarear do dia para poder fugir daquela cidade onde almas penadas e pessoas do “mundo dos pés juntos”, saem de suas covas a noite para beber, contar histórias e assombrar os visitantes a procura de um rabo de saia, que acabam sempre em algum boteco e voltam pra casa sem comer ninguém e o que é pior, com as calças borradas de tanto medo.

P.S.: Esta história é verídica com testemunhas e tudo. Até hoje nunca mais se viu as figuras destes cinco rapazes na pequena cidade de Bálsamo. O protagonista desta história, o nosso cativante Chumbinho está vivinho da silva e está mais conformado, aceitou a morte do seu querido pai, fez a barba (só deixou o bigodinho), parou de usar aquele chapeuzinho de couro pra esconder a careca, mas só não parou de beber e contar histórias engraçadas. O Jaime fechou a lanchonete, dizia que não aguentava mais tantos bêbados e “almas penadas” que bebiam a noite inteira e saíam sem pagar a conta.