OS ÚLTIMOS DESEJOS DE MÃINHA

Dona Maria do Perpétuo Socorro, a matriarca da família, se orgulhava de ter criado todos os 12 filhos sem nunca ter deixado faltar o básico para comer, beber e vestir. Já beirando os noventa anos, já não costurava como antes, mas apesar da “vista” ruim, ainda insistia em continuar fazendo seus biquinhos na profissão, trabalho este que garantiu por muito tempo o arroz e feijão na mesa daquela humilde e barulhenta casinha na periferia de São Paulo. Seu marido Zé Florêncio partiu cedo, vítima de “sopro” no coração e deixou a pobre Dona Maria com o pesado fardo de cuidar de 12 bocas famintas.

Deu a vida para criar os bacuris longe das coisas erradas e perto do estudo e do trabalho, mesmo sabendo pouco das letras, sempre dizia: “Fio meu num pode ficá de vagabundagem, tem que estudá e trabaiá pro dia de amanhã sê alguém na vida e num ficá aí sofrendo no mundo.” E assim cumpriu sua dura missão, todos os filhos estavam agora bem encaminhados na vida e aqui ficou a Dona Maria e a filha Clarice, única filha que ainda permanecia na casa de criação.

A velha senhora tinha mania de preparar os filhos para o dia do seu derradeiro fim na face da terra. A cada pontual visita dos filhos, dava-lhes em particular a incumbência de prepararem o seu velório. Pessoa religiosa e querida entre os vizinhos, Dona Maria deixava claro a obrigação de cada filho: “- Se não fizerem as coisas como eu tô mandando, volto para puxar o pé de vocês.” Nenhum filho levava tão a sério estes mórbidos pedidos: “- Que isto mãinha, para de falar bobagem. A senhora nem doente está. Vai durar muito tempo ainda.” Mas Dona Maria sempre contestava: “- Cada um sabe a sua hora meu fio, a minha tá chegando, tô falando num é de hoje, cada um sabe muito bem o que é pra fazer. Se não fizerem do jeito que tô mandando...” Mas como tantos anos já se passaram e ela ainda desfrutava de boa saúde, nenhum filho dava bola para as lamentações e muito menos para os encargos funerais incansavelmente passados e repassados por Dona Maria.

Até que um dia PÁ PUM, a velha senhora cumpriu sua sina. Foi deitar-se e simplesmente não mais abriu os olhos. Clarice fez o trabalho de ligar para todos os irmãos e logo a casa estava cheinha de gente, entre filhos, noras, genros e netos aos baldes. Até parecia a velha, movimentada e barulhenta morada de outrora. Na ocasião deste infortúnio, ainda era costume velar os defuntos em casa, mais precisamente no centro da sala entre castiçais de velas e flores naturais.

A filha Claudinéia puxou da memória as suas obrigações para com a falecida. “- A mãinha falou que queria ser enterrada com o vestido azul que a comadre Zuleica deu pra ela.” E lá foram as irmãs vestirem a extinta senhora com o tal vestido azul. Nesta hora as lembranças começaram a estalar na cabeça de todos os outros filhos. A filha Cleonice foi a próxima a trazer da memória os seus deveres. “- Nossa, é mesmo, a mãinha sempre falava que queria ser enterrada com o colar do sagrado coração. Tá na gaveta do armarinho.” E lá foi mais um acessório vestido na velha mãe ainda deitada na cama, pacientemente a espera de seu último fato. A filha Silmara foi a próxima a se lembrar: “- Gente, a mãinha dizia que queria ser enterrada com o manto da Nossa Senhora de Fátima.” Prontamente foi caçar o tal acessório entre as vestes no antigo guarda roupas. Já aparentemente vestida para o último compromisso, finalmente lá estava a imóvel senhora, no meio da sala entre choros e velas. Neste momento, mais lembranças davam estranho e ligeiro movimento à cerimônia. O filho Josimar foi o próximo: “- A mãinha sempre dizia que queria ser enterrada com a bíblia sagrada.” E lá foi pegar a pesada bíblia e de pronto colocou-a num espaço entre os pés da sua mãe e a caixa mortuária. Em seguida o que se sucedeu foi inúmeros movimentos de idas e vindas ao velho quarto da senhora mãe e vários outros objetos de variados tamanhos sendo colocados no já abarrotado ataúde. Nenhum filho desejava conviver com o remorso de não ter realizado o último desejo de sua já calada mãe. Sem falar na praga rogada e temida por todos os filhos de ter os pés puxados à noite caso não fizessem o que ela estava mandando.

E como uma mala sendo feita antes de uma grande e demorada viagem, lá estava aquela túnica de madeira abarrotada de coisas a transbordar e causar estranheza a todos os vizinhos presentes. Dona Maria realmente não tinha noção dos pedidos feitos aos filhos, e muito menos se seu último “transporte” suportaria o peso de tantos objetos como uma caixinha de músicas que ganhara de sua neta Priscila, uma estátua do Padre Cícero que ganhara da sua nora Norma, um porta-retratos com a foto do finado marido Zé Florêncio, uma velha boneca de porcelana, lembrança dos tempos de menina, um medalhão, lembrança da visita ao Brasil do Papa João Paulo II, um LP da dubla Cascatinha & Inhana, um terço da Divina Misericórdia, que ganhou do já falecido Padre Luiz da paróquia do bairro, um relógio de parede, presente de casamento dado por seu pai, um porta anel de madeira talhado com seu nome, entre outros apegados objetos.

E lá chegou a hora de finalmente fechar o caixão para a última viagem, e para surpresa de todos, por mais que se ajeitassem os objetos entre o corpo frio e as paredes do caixão, nada de conseguir fechar. Daí o vizinho Gusmão deu a dica. “- Gente, não adianta pelejar, assim não fecha, tem que tirar alguma coisa daí”. Pronto, foi a deixa para o início da confusão, a briga entre os irmãos foi generalizada. Amarildo atacou: “- Peraí, o disco do Cascatinha & Inhana ninguém vai tirar, a mãinha era fã deles.” E na mesma hora Eliseu retruca: “- Ninguém toca no relógio de parede, a mãinha amava este relógio mais que tudo...”. E lá vem o Elías: “- Tira tudo, menos a estátua do Padre Cícero”...

Demorou até que se acertassem tão disputada desavença. A solução encontrada foi fazerem uma vaquinha entre todos os filhos para comprarem uma cova três vezes maior para a Dona Maria, onde além dos objetos colocados no caixão, havia também espaço para colocar a fiel e importante companheira de trabalho de Dona Maria, a velha máquina de costura, que possibilitou criar todos os filhos longe da vagabundagem, perto dos estudos e do trabalho para no dia de amanhã serem alguém na vida e não ficarem aí sofrendo no mundo.