IMPREVISTOS DE UM DOCE AMOR

Dona Anita, a Dônita doceira como era mais conhecida, era a melhor doceira de toda a região da pequena cidade de Bálsamo. “Corpinho” estilo mamma italiana no alto dos seus sessenta e oito anos e sempre de bem com a vida, cativava a todos com seu riso fácil de escancarado encanto.

Ninguém naquela cidade se destacava tanto quanto aquela agradável senhora na arte do preparo de quitutes adocicados, afinal de contas trazia no sangue a tradição da família Bellucci de sempre formar as melhores doceiras, costume que vinha desde sua bisavó Angelina, uma italiana que não se cansava de dizer a todas as mulheres da família que homem se prende pelo estômago e que boa cozinheira nunca fica sem marido.

Tradição levada a sério por muitas gerações da tradicional família Bellucci. Das seis irmãs, Dônita era indiscutivelmente a melhor no preparo de doces, porém ao contrário do que sua bisavó proferia, até aquele momento o casamento parecia um conto de fadas distante e inalcançável. Filha caçula, viu todas as cinco irmãs cumprirem matrimônio, mas por efeito do destino, ficou para titia. Surgiram até boatos na cidade de que não queria largar os pais sozinhos, daí o motivo de nunca se interessar por homem algum.

Certa vez na mocidade até chegou a ficar noiva de um tal Álvaro Morales, mas o Alvinho como era chamado, não era lá muito chegado às carícias de uma dama, por muito tempo achavam que aquele homem franzino de voz “suave” era apenas mais um gentleman, de educação refinada e classe provinda de berço. Seu requintado gingado ao andar, sua elegância ao vestir, sua aversão aos esportes ditos de macho, sua repulsa a trabalhos pesados, sua mania de passar cremes na cara antes de dormir e seus trejeitos afeminados, segundo uma tia, muito certamente vinha do fato de ser o único filho homem na família em convívio com três irmãs mais velhas. Mais tarde veio a comprovação da suspeita de todos. Alvinho rompeu com Dônita e seguiu para São Paulo para trabalhar como estilista da alta sociedade paulistana e aqui ficou a pobre Dônita, abandonada e traumatizada.

Desiludida e sozinha após a morte dos pais, a sessentona Dônita depois do conselho da vizinha Lurdinha, uma viuvinha animada que não perde um baile no clube da terceira idade, resolveu também encontrar distração na animada festa semanal dos anciões da cidade, aqueles que não deixam a peteca cair e vivem a vida intensamente e se orgulham de expressar em um só coro: “Nós, ficarmos jogando bingo e esperando a morte chegar?! Isto é coisa de velho gagá, a nossa onda é balançar o esqueleto, namorá e fazê amô, sacô?! “Rapaziada” prafrentex que se facilitar dá um baile em muito adolescente por aí...mas isto é uma outra história.

Dônita numa destas empreitadas noturnas conheceu o Seu Agenor, um verdadeiro pé de valsa, sempre ornamentado com seu pomposo chapeuzinho panamá, paletó de risca de giz e sapatos impecavelmente bem engraxados. Seu Genô era o viúvo mais cobiçado do pedaço, aquele senhor esguio e galanteador, sabia de fato como tratar uma mulher, se gabava de nunca ter pisado em pé de dama na execução do bailado, era capaz de dançar em qualquer ritmo e estilo de música, sem dúvida um malabarista das pistas, na casa dos seus setenta e dois anos ainda evoluía com pompa de moço toda a extensão daquele imenso salão.

Dônita uniu o útil ao agradável, pois com Seu Genô, em quatro meses de namoro e dança todas as quartas e sábados já conseguira emagrecer dez quilos, se sentia muito bem, feliz e amada. E como tudo é rápido hoje em dia, resolveram trocar alianças já no quinto mês de namoro.

Festança na cidade, afinal depois de tantos anos de espera, a doceira mais famosa da cidade ía enfim desencalhar. Os preparativos foram grandes, muita gente convidada, duas novilhas abatidas para alimentar a todos, música, dança e é claro os doces mais saborosos que Dônita pôde preparar, mais de quinze qualidades de doces, dos mais variados tipos, cores, formas e sabores.

Os convidados se deliciaram e a cada degustação elogiavam os apetitosos doces de Dônita. Reconhecimento merecido para seu contentamento, mas...

...para sua inquietude, aquele pelo qual esperava o mais soberbo dos elogios guardava silêncio enigmático, descobrira depois através das “amigas de plantão’ de que sequer tocara em um só doce disposto na farta mesa. Intrigada e um pouco chateada com a situação e já se sentindo no direito de cobrar uma explicação, Dônita foi tirar a limpo pessoalmente:

-Nossa Genô, que desfeita a sua, fiquei uma semana inteira preparando estes doces para nossa festa de casamento e você sequer experimentou um só docinho?!

Seguiu-se um silêncio profundo, como se Seu Genô, estivesse cuidadosamente escolhendo cada palavra para não magoá-la.

-Sabe o que é minha pombinha...eu sou diabético. Pronto falei, é isto mesmo, EU SOU DIABÉTICO. O doce pode me matar.

O espanto foi sem medida, Dônita sentira o mundo desabar em sua cabeça. Como a melhor doceira da região pôde se casar com um diabético? Respondeu ainda desacorçoada.

-DI-A-BÉ-TI-CO?! Quer dizer que...você não pode comer doces?! Não acredito...mas Genô...isto é uma tragédia...

-Pois é meu benzinho, desculpa não avisar antes. O amor é imprevisível mesmo, e não foram os seus doces que fizeram com que me encantasse por você. Os doces podem me matar sim, mas sem o seu amor eu prefiro morrer...se quiser, para não magoá-la eu sou capaz de comer todos os doces que você preparar, eu como...como mesmo...e que se dane esta maldita enfermidade, que se dane!

E após uma pausa pensativa e conformada, Dônita fez a escolha mais difícil de toda a sua vida, escolheu o amor, pois segundo ela de nada adiantava ser a melhor doceira da região se não possuísse o amor verdadeiro. E então anunciou sua importante decisão.

-Tudo bem Genô, a partir de hoje não farei mais doces. Agora que encontrei meu verdadeiro amor, não posso matá-lo não é mesmo?! Vem cá meu bem, vamos dançar...

E foi assim que terminou mais uma tradição de família por causa deste tal de amor. Dônita e Seu Genô estão vivendo muito bem após dois anos de casório. A cidade perdeu a melhor doceira, porém ganhou uma salgadeira de mão cheia. A diabetes do Seu Genô anda controlada. Dônita já emagreceu mais quinze quilos com a dança e anda empolgada com a nova vida. O bom-humor também está em alta na casa dos dois pombinhos, a plaquinha de uso costumeiro nas casas do interior para designar a harmonia do lar, na casa da ex-doceira teve uma pequena e sutil correção, ao invés de “Lar doce lar” leiamos “Lar diet lar”, tudo para agradar o seu amor.