GRAÇAS AO DEUS DE MINHA MÃE

Durante muito tempo, uma das grandes tristezas de minha mãe, evangélica desde menina era saber que um de seus filhos não crê em Deus. Fiz o que pude na tentativa de amenizar sua tristeza, mas não podia mentir para ela. Até mesmo porque, se mentisse, ela saberia. Minha mãe era sábia. Via sempre muito além do que estava diante de seus olhos. Ouvia sempre mais do que os ouvidos escutavam. Na verdade auscultava. Examinava naturalmente a sinceridade no que seus filhos falavam.

Com o tempo, ela foi percebendo que meu ateísmo se atém ao Deus – ou aos Deuses – nas formas apresentadas pelo homem, via oralidade ou literaturas. Isso não a satisfez, mas a sua sabedoria soube alcançar a dimensão do que penso. No fundo, ao perceber minha forma de pensamento, minha mãe acabou se identificando comigo de alguma forma. Chegou a me confessar que era evangélica, de todo o coração, acreditava de fato em Deus, mas às vezes também se questionava sobre as características atribuídas a Ele pelas religiões, inclusive a sua, que ela não trocava por nenhuma outra.

Em nossas muitas conversas a sós – passamos a conversar ainda mais, depois da confissão –, minha mãe me falou várias vezes de uma visão que teve quando ainda era criança e trabalhava com os pais na colheita de café numa fazenda no interior do Rio de Janeiro. Nesse dia estava sozinha e muito triste, mais do que de costume, com a vida precária e sofrida que levava junto com os pais e os irmãos. Em dado momento, meio que adormeceu e surgiram à sua frente quatro moças angelicais, com vestidos longos, brancos e reluzentes. As moças flutuavam, cantando para ela em vozes doces e aveludadas um hino muito popular entre os evangélicos, que diz na primeira estrofe: “Não desanime, Deus proverá;/ Deus velará por ti.../ Sob suas asas te acolherá;/ Deus velará por ti...”.

Minha mãe me disse que depois daquela tardinha, ela nunca mais esmoreceu completamente. Foram muitos os sofrimentos pela infância inteira, na juventude e depois do casamento, ao se deparar com a maior de suas responsabilidades, mas toda vez que pensava em desistir de tudo, surgia forte na sua mente a imagem das quatro moças e o som de suas vozes prometendo que Deus velaria por ela. E por sua conta, minha mãe acrescentava no pensamento que seu Deus velaria também por seus filhos e lhe daria força para criá-los e vê-los bem, antes de “partir”.

Quando minha mãe faleceu, eu estava naquele quarto de hospital. Segurei sua mão à noite inteira. Ela partiu ouvindo seu filho ateu cantar baixinho, bem próximo ao seu ouvido, o hino que pautara toda a sua vida. Fiz o que pude para forjar um pouco das vozes doces daquelas quatro moças, mas é claro que não consegui... apesar disso, em alguns momentos pude perceber que minha mãe, mesmo sem poder falar ou se mexer, desenhava traços de um sorriso que aprovava o meu esforço e se confortava.

Tenho impressão de que minha mãe não se sentiu traída pelo seu Deus. O seu único sonho desde que teve filhos e se viu sozinha com os nove, foi realizado: ela nos criou com amor e dignidade, mesmo com tanta penúria, e conseguiu nos tornar homens e mulheres de bem. Razoavelmente bem sucedidos. Nossos filhos já não sofrem parte do que ela sofreu por toda a vida, nem do que nós sofremos por tanto tempo. Graças ao que aprendemos com nossa mãe.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 03/12/2012
Reeditado em 04/12/2012
Código do texto: T4017362
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