Pouco antes da alvorada
Escapo dos meus horários, faço uma pausa. Agarro com firmeza uma caneca de café, como se fosse uma boia, um salva-vidas. Numa hora não muito normal pra isso, procuro naquela luz estranha de uma manhã que se anuncia uma lembrança antiga. O reflexo que me vem é o de uma tarde nublada há muitos anos atrás, quando o mundo era tão menor e tão menos assustador que agora. Escapo dos meus horários, dos compromissos, da dor que agora me acompanha. Lembro da época mágica em que coisas boas se materializavam ao meu redor num dia nublado e de atmosfera cinzenta, muitas vezes com um frio que soprava através das frestinhas quando chegávamos para olhar pelo vidro da janela. Imagens em preto e branco se movimentavam na sala, uma música tocava, antigas memórias que hoje nada mais são que fantasmas queridos, quase totalmente incapazes de se materializar.
Escapo da minha própria agenda, por intermédio do sono extra que ganhei. Prêmio por ter dormido muito mais cedo que de costume na noite anterior. Neste tempo mágico de lembrança e sentimentos, tento me refazer das antigas faltas, das antigas saudades. Tiro um momento para me render a esse desejo de retorno de sensações impossíveis de serem resgatadas. Nessa luz cinzenta e mágica, que em breve esse lugar tão rude e abafado irá destruir, eu rendo homenagem a antigos deuses sem nome, tão mais justos e tão mais sábios que esses que aí estão. Procuro as energias para retomar a trajetória normal da vida, por mais que a saudade daquele céu cinzento e frio se faça presente. O primeiro raio de sol tinge um canto da paisagem. O dia da gente comum vai começar.
Recolho a pequena felicidade das lembranças e das sensações, e tento levá-las comigo para o resto do dia. Na hora de sair, um arrepio, uma nuvem no céu. Um vento atipicamente frio, pouco mais que uma brisa, vem saudar meu dia. Sorrio no meu íntimo, café com leite bem quente, pão, um agasalho quente, e lembranças de um tempo feliz.