VIAJAR É PRECISO - IV

VIAJAR É PRECISO IV

Francisco Alonso

Às nove horas levantei-me rejuvenescido. Fiz minha higiene matinal e descemos à lanchonete para a primeira refeição. Em seguida guar-damos a bagagem, verifiquei os tirantes da moto, abasteci o carro e calibrei os pneus. Estava tudo pronto para seguir viagem quando um certo desconforto me dominou. Angustiado, circundei o posto preguiçosamente e voltei ao carro. Vendo meu abatimento, Nida perguntou:

- Está procurando por alguém?

Após contar o sucedido à noite, ela concluiu em sua santa beatice:

- Deve ser algum maluco, pois Deus é onipotente e não tem o pe-cado da inveja!

Pendulei a cabeça na dúvida e dei partida no carro.

Nosso destino, onde ficaríamos dois dias, seria Niterói. A estrada até lá, se não apresentasse surpresas, deveria estar ótima como da última viagem. De Iconha até a divisa não tivemos dissabores, entretanto, ao adentrarmos o Estado do Rio voltamos a trafegar sobre a superfície da lua tal a quantidade de buracos. Finalmente chegamos a Niterói, minha terra natal. Meu compadre Almir, sabedor da nossa chegada, já me esperava com os mimos de costume: um bom churrasco e um litro de Chivas doze anos. Almir mora num bairro considerado nobre, entrementes, como toda Niterói e o Rio de Janeiro, cercada de morros e conseqüentemente de favelas. O comércio do compadre, uma loja de material de construção, fica situada perto da sua residência e numa rua que desemborca numa favela, que por segurança ne-garei o seu nome, na qual presenciei fatos estarrecedores. Os meus sete abnegados leitores devem se perguntar: Por que falar de uma favela se já sa-bemos tudo sobre elas através da TV? Concordo com a indagação em parte. Pela TV tomamos conhecimento do seu tráfico de drogas e dos tiroteios entre traficantes e policiais. Os sociólogos dizem que a causa principal de tudo isso é a miséria, a desigualdade social. Não discordo, mas não é a causa princi-pal. A causa principal é a corrupção, essa malfadada praga que contamina do presidente que não sabe e não vê nada até o simples guarda de trânsito. Não vou me ater sobre as drogas, miséria ou desigualdade social, visto que, desde que o mundo é mundo, sempre houve e sempre haverá miséria, desi-gualdade social e muitas drogas. Vou discorrer sobre o que presenciei na mi-nha estada em Niterói, mais precisamente numa noite quando estávamos confabulando na loja do compadre depois do expediente.

Estávamos sentados à porta da loja quando perguntei:

- Almir, esse trânsito de pessoas pra lá e pra cá são de moradores do morro?

Almir soltou um riso suspiroso e disse:

- Cinqüenta por cento são pessoas moradoras na comunidade, as outras vêm comprar droga.

Olhei pro compadre intrigado e indaguei:

- Como você sabe?

Como um mestre ensinando ao aluno ignorante, ele falou pausa-damente:

- Preste atenção como elas passam.

Depois de observar atentamente os passantes, disse:

- Uns caminham com tranqüilidade, outros a passos longos. Logi-camente os que estão com pressa querem chegar logo em casa.

- Não... os que passam apressados não são moradores, são viciados que vão comprar drogas no morro, eles estão sedentos por um pó ou uma maconha – e completou o compadre – Marque um desses apressados e espere vinte minutos.

- Pra quê? – questionei curioso.

- Você verá ele retornar andando pianinho, nas nuvens...!

Como Almir sugeriu, assim fiz. Marquei um rapaz de camisa ver-melha, bermudão branco e tênis vermelho que passava apressado. Vinte mi-nutos depois ele retornou totalmente transfigurado. Andava flutuando e estampava um riso angelical. Quando contei das minhas observações ao com-padre, ele disse:

- Eu não falei!

- E a polícia... não toma nenhuma providência? – perguntou Nida.

- Espere só um pouco que ela vai chegar.

- Vai haver tiroteio? – perguntou Nida assustada.

Almir, tranqüilizador, disse:

- Nãão... ela só vem apanhar o pepê.

- Pepê!?

- É Nida... a comissão, a grana que ela cobra para não intervir no tráfico.

- E se os traficantes não pagarem?

- Aí a polícia fecha as entradas do morro e os viciados não podem subir pra comprar a droga.

- E o que acontece? – indagou Nida com os olhos esbugalhados.

- A firma quebra... – completou Almir com ares professoral.

Uma hora após, um furgão preto aportou. Almir me cutucou e a-firmou:

- Os homens chegaram.

Fiquei olhando o carro se aproximar de mansinho de onde está-vamos e depois sumir na curva em direção a subida do morro. A expectativa pelos acontecimentos aumentava desmesuradamente. Nida não se continha na cadeira. Minuto após minuto ela se levantava, caminhava até o meio da rua, olhava para o cume do morro e retornava. De repente aconteceu o que menos esperávamos: um tiroteio infernal começou e balas de fuzil AR15 ras-garam os céus qual fogos de artifícios. O fuzuê foi terrível. Os transeuntes corriam desesperados procurando abrigo e muitos deles nos fizeram comp-nhia se refugiando na loja do compadre. Quando os tiros serenaram e a cal-ma voltou a reinar, procurei por Nida. Após vasculhar a loja com olhares pre-ocupados, finalmente a encontrei: ela estava escondida sob uma mesa. A chamei mandando se desalojar e ela teimava em se manter escondida. Com os meus apelos e um juramento de Almir de que não haveria novo tiroteio, Nida foi se levantando de mansinho. Quando estendi a mão para ajudá-la, um fato inusitado foi constatado: uma poça d’água inundava o assoalho sob a mesa. Constrangida pelo fato, Nida tentou dissimular:

- Parece que alguém deixou cair um copo d’água sob a mesa, Al-mir!

- E a sua calça molhada e esse cheiro! Será que alguém também jogou um copo de xixi sobre a senhora? – galhofou Almir.

- O que foi que aconteceu, Almir, por que o tiroteio? – perguntei depois de acomodar Nida.

- Com certeza eles não encontraram o cara que faz o pagamento e atiraram para avisar que estão esperando a grana.

De repente, novos estampidos pipocaram no cume do morro. Nida mais que depressa voltou a se esconder e todos ficaram apreensivos.

Almir, experiente no seu dia-a-dia, tranqüilizou:

- Não se preocupem, foram os traficantes que responderam que já estão descendo.

Voltamos a nos posicionar à porta da loja e ficamos esperando. Dez minutos depois, Almir nos alertou:

- O pagamento já vai ser feito. Veja aqueles dois caras saindo da viela carregando metralhadoras Uzi... são eles que farão o pagamento.

- Tem certeza que não vai sair tiroteio entre eles, Almir? –perguntou Nida ressabiada.

- Não... se os traficantes não descessem pra trazer o pepê, a polícia ficaria a noite toda na subida do morro e prenderia os viciados que chegassem para comprar droga. Como já estão providenciando o pagamento, daqui a pouco a polícia vai embora.

Como Almir afirmou, não demorou muito o furgão preto passou à nossa frente. Fiquei estático e boquiaberto vendo eles se afastarem. Quando o entorpecimento passou, perguntei:

- Por que alguém não denuncia essa corrupção, Almir?

- Porque todo mundo tem família e não quer deixar viúva. Além disso, do que vai adiantar!? Se prenderem os traficantes e os policiais corruptos outros tomam o lugar e tudo continua na mesma. E não se esqueça que o pepê é distribuído para todos, para os peixes pequenos e para os peixes gra-údos.

Abestalhado com tudo que presenciara, exclamei:

- E ainda dizem que a causa principal do nosso subdesenvolvi-mento é a miséria e a desigualdade social!

- Se o dinheiro da corrupção fosse canalizada para a educação e a saúde, Chico, nós seríamos o melhor país do mundo! – profetizou Almir,

Contrariando nosso cronograma e atendendo aos apelos do com-padre, permanecemos em Niterói por quatro dias. No quinto dia continuamos nossa viagem.

29.04.2006

francisco alonso
Enviado por francisco alonso em 10/09/2012
Código do texto: T3874337
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