VIAJAR É PRECISO - III
VIAJAR É PRECISO III
A ÚLTIMA VIAGEM
Francisco Alonso
Chegamos a Iconha ao cair da noite. Como detesto viajar em com-panhia de pirilampos, nos alojamos, depois de procurar em vão um local mais aconchegante, num hotel ao lado de um posto de gasolina. O hotel era sofrí-vel, mas o que fazer... descansar era necessário e prudente. Nos registramos e acomodamos a bagagem. Desci à lanchonete e, para relaxar, pedi uma cerveja e um conhaque. Sentei-me numa mesa na calçada e fiquei bebericando pensando nas delícias que a viagem poderia nos proporcionar. Quando a cerveja se encontrava pela metade e o conhaque começou a dar mostras da sua deleitosa parceria, Nida se achegou. Ela se mostrava triste e preocupada. A razão da sua casmurrice era uma moça que tentara se hospe-dar no hotel e, por insuficiência de fundos, não conseguira. A história da moça era trivial como as diversas que grassam por este imenso Brasil. Depois de vender todas as suas tralhas, ela saira de Goiás com três filhos menores para Porto Alegre com a promessa de uma turista, que se fizera sua amiga, para trabalhar numa pequena indústria de sua propriedade. Por mais inacreditável que possa parecer, foi um engodo catastrófico: não existia a tal indús-tria e o endereço residencial da “amiga”, inexistente. Após penar com os três filhos por dois dias, por caridade uma igreja lhe deu abrigo e escasso dinheiro para retornar a sua terra natal: o Ceará. Entretanto o parco dinheiro escafe-deu-se e estavam voltando de carona, isso quando algum caridoso caminhoneiro lhe estendia a mão. Compadecido da história e estimulado pelo generoso coração da minha companheira, patrocinei a estadia e, para saciar a fome das crianças, ofertei um jantar que foi agradecido com muitos Deus lhe pague e beijos na mão.
Depois de solucionado o inopinado problema, continuei a matutar com meus botões. Quando a cerveja secou, levantei-me para outra buscar. Ao voltar à mesa, um senhor sentara na mesa contígua. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos e resmungava como um velho decrépito. Inco-modado com meus olhares indiscretos e curiosos, o senhor perguntou-me de chofre: Você acredita que Deus é o Ser mais invejoso do mundo!? Não en-tendendo o porquê da pergunta e a achando fora de propósito, com um sor-riso camuflado respondi perguntando: Por que Deus teria inveja de alguém se Ele é o Senhor do universo e para Ele nada é impossível? Sem pedir licença, o homem se levantou e apoderou-se de uma cadeira ao meu lado. Em se-guida pegou meu copo de cerveja e o esvaziou. Me levantei, busquei outro copo e voltei à mesa. O homem, que antes não parava de resmungar, nesse instante estava silencioso e com os olhos contemplando o céu. Respeitando seu emudecimento, mantive-me calado. Dado instante ele segurou meu braço e começou a discorrer: Eu tenho uma pequena roça aqui perto e todo final de semana me recolhia à sua quietude. Como sou viúvo e infelizmente minha falecida mulher não me presenteou com filhos, procurava passar meu tempo plantando árvores frutíferas e cuidando das plantas. Certo dia, um homem desconhecido passou por minha roça e ao me ver conversando com as rosas, me chamou e me ofertou uma semente. Aquele momento foi breve e ele dis-se apenas que eu teria muita alegria quando a semente germinasse. Agradeci o presente e ele partiu sem ao menos me dizer o seu nome. Imediatamente escolhi um local apropriado ao lado da varanda e a plantei. Em uma semana, daquela semente floresceu um arbusto cuja altura passava de um metro. Na segunda semana, aquele estranho arbusto, que crescia a olhos vistos, já es-tava com mais de dois metros e pequenas frutas em-belezavam os seus galhos. Na terceira semana ele parou de crescer e seus frutos eram de uma beleza descomunal.
- O senhor os saboreou? – perguntei intrigado com a história.
- A curiosidade foi maior que a cautela! Evidentemente não resisti e os experimentei. O sabor era inigualável. Tinha uma doçura impar e a tex-tura de um pêssego.
O senhor fez uma pausa e continuou:
- Um mês depois, quando estava na roça, sentado na mureta da varanda tomando uma bela fresca, o telefone tocou. Um mau pressentimento se apoderou de mim. Meu corpo se arrepiou e por encanto a refrescante brisa parou de súbito. Caminhei temeroso até o telefone e o atendi. Era meu irmão que morava nos Estados Unidos e em cuja companhia minha mãe passava umas férias. A notícia foi tenebrosa: minha mãe falecera repentinamente. Impossibilitado de ir ao seu sepultamento, devido a distância, peguei o seu retrato que estava sobre uma estante e voltei à varanda. Sentei-me na mureta com o retrato ao peito e as lágrimas banharam a foto daquela bela mulher que sempre me fizera companhia.
- E o que tem Deus com essa história? – indaguei ansioso.
O senhor fez um sinal para conter minha ansiedade e prosseguiu:
- Eu fiquei na varanda por muitas horas e um calor sufocante fazia-me banhar em suor. Certo instante, como por milagre, somente aquela árvore cuja semente fora-me dada por aquele estranho homem, começou a balançar soprando um vento gélido que, em segundos, fez o suor que me ba-nhava se evaporar. Cansado e deprimido, acabei adormecendo. Quando acordei uma hora mais tarde, acredite ou não, meu corpo estava por inteiro coberto pelas folhas que se desprenderam dos ramos daquela árvore.
- O senhor acha que fora uma mensagem da sua mãe? – inquiri com a expressão zombeteira.
O senhor me lançou um olhar reprovador e continuou:
- Dessa data em diante eu passei a morar definitivamente na roça. Sempre que chegava do trabalho – embora o senhor faça essa cara de descrédito – a árvore se alvoroçava como um fiel cão ao ver seu dono. Quando eu estava triste ou preocupado, ela zumbia um som tão confortante, tão re-parador que mais parecia uma cantiga de ninar.
- E por quanto tempo aconteceu esse fenômeno? – perguntei a-chando a história muito fantasiosa.
- Até o dia em que comecei a chamar a árvore de Mãe Maria, o nome da minha mãe. Desse dia em diante a árvore começou a mingua até secar totalmente.
- Como assim...?
- Foi inveja de Deus.
- Inveja de Deus...!?
- Lógico. Por Ele não ter uma mãe e por estar enciumado de ter me dado uma mãe tão maravilhosa, com certeza levou minha mãe pra cuidar Dele.
- Mas Deus é um Ser Supremo, não precisa de uma genitora.
- Aí é que o senhor se engana, todos nós precisamos de uma mão protetora, de uma voz que diga ao nosso ouvido: Meu filho, não tenha medo, eu estou aqui!
- O senhor não está equivocado quanto a Deus?
O homem sorriu e disse:
- Nãão... Ele é um invejoso! Ele levou minha mãe pra cuidar Dele!
Quando iniciava uma pergunta para rebater sua teoria, o senhor se levantou e me deixou falando sozinho. Me calei e fiquei ouvindo ele resmungar enquanto se afastava:
- Foi inveja Dele... foi inveja Dele...
Tomei o restante do conhaque que sobrara no copo e fui dormir. A viagem continuaria no outro dia.
17.03.2006