VIAJAR É PRECISO II
VIAJAR É PRECISO – II
Francisco Alonso
Às dez horas de uma bela manhã de quinta-feira iniciamos nossa viagem. Seriam três dias de percurso e minha maior preocupação era com as estradas. Como elas estariam? Eu me perguntava: ...Será que os milhares de buracos presenciados e sentidos no lombo na última viagem teriam se multiplicados ou foram extirpados literalmente da face da terra!?... O leitor mais viajado e observador deve se indagar: esse cara está viajando de carro ou de cágado para percorrer dois mil quilômetros em três dias? Alerto a esse pers-crutador e aos meus sete fiéis e abnegados leitores que, embora o trajeto se-ja meu companheiro de outras caminhadas, não viajo à noite e os primeiros raios da alvorada não me servem como despertador ou regulador. Portanto, pelos meus cálculo e pelo acordado com o amigo Fábio, sábado à noite esta-ríamos em Blumenau e, logicamente, participaríamos da Oktoberfest. Mas vamos por parte, não vamos atropelar a viagem.
Com calma e prudência tomamos a estrada. A primeira etapa – Eunápolis-Itamaraju – o asfalto estava um verdadeiro tapete, com raras exce-ções. Infelizmente essas raras exceções são o retrato do Brasil. Por que o governo, se ainda existe mandatário neste país, não faz um trabalho preven-tivo de conservação das nossas estradas? Por que ele espera as estradas virarem verdadeiras pocilgas para, em ano eleitoral, fazer porcos remendos para angariar votos? ( ...Ainda bem que o povo está ficando menos burro!) Pois bem... essas raras exceções até Itamaraju me fizeram esmorecer o pé e andar mais devagar, mormente por estar puxando uma carreta e uma moto de mais de duzentos quilos. A segunda etapa até a divisa com o Estado do Espírito Santo, foi um Deus nos acuda. As crateras na estrada quase me fizeram retornar ao aconchego do lar. Mas eu estava determinado. Não seria a irresponsabilidade de um governo que faria mudar meus planos. Felizmente chegamos à divisa e, como por um passe de mágica, as condições da estra-da mudaram radicalmente. Então me perguntei: por que uma estrada federal está em “perfeitas” condições de dirigibilidade em um estado enquanto que em outro estado parece que estamos trafegando sobre a lua? (Fique atento, caro leitor, ainda voltarei a falar dessas “perfeitas” condições)
Quando nossos estômagos deram os primeiros sinais de apetite e o adiantar da hora já beirava o meio da tarde, resolvemos parar numa churrascaria. Era uma churrascaria incrustada num posto de gasolina como tantas outras existentes na estrada. Nos sentamos, solicitei uma cerveja e ao passar a vista pelo bufê e pelas carnes servidas aos outros comensais, constatei que nenhuma novidade alegraria nossa bulimia. Mas paciência...
A primeira cerveja desceu como água-de-coco. Ao nos ser servi-da a segunda cerveja, Nida, minha digníssima patroa, observou:
- Reparou como esse garçom se parece com o Gilvan?
Gilvan é proprietário de um aprazível restaurante em Eunápolis onde todos os dias, após preencher folhas brancas no computador, me reco-lho para saciar minha sede. Num desses encontros, o Nego Gilvan se la-muriou:
- Daqui a cinco anos vou diminuir minha carga horária de trabalho e quero aproveitar mais a minha vida, Chico! Vou fazer como você, conhecer este mundão de Deus.
Olhei-o com miseração e perguntei:
- Você tem certeza que é reduzindo o seu horário que aproveitará mais a vida, Gilvan?
Gilvan me fitou intrigado e exclamou:
- Mas é lógico, Chico!
Pendulei a cabeça e rebati:
- Ainda bem que só lhe falta tempo e não dinheiro...
- Não... dinheiro não é o problema, Chico, somente o pouco tempo que o trabalho me deixa e umas dores nas pernas me impedem de viajar!
- Você está parecendo com minha mãe, Gilvan!
-Como assim...
Soltei um riso triste e expliquei:
- Minha mãe sempre viveu para o trabalho, para os filhos e para um homem que pouco lhe dava valor. Quando lhe sugeria fazer uma viagem, ela sempre alegava que não poderia deixar o meu padrasto sozinho e que só viajaria com muito dinheiro. Acredite você ou não, Gilvan, as únicas viagens que ela fez eu tive de praticamente arrastá-la e intimar as filhas do meu padrasto para ficar com ele. Atualmente ela mora comigo, é viúva, faz hemodiá-lise três vezes por semana e recentemente sofreu um derrame que a impede de se locomover. ...Se anos passados ela se negava em viajar, hoje, a idade e seu estado de saúde não a permitem mais.
- O que você está querendo dizer? – inquiriu Gilvan assustado.
- Eu só estou querendo te dizer que todos nós somos frágeis co-mo uma casca de ovo, que qualquer pequena queda poderá nos inutilizar, que qualquer queda poderá interromper os nossos planos, o nosso futuro.
- Mas eu não sou um ovo, não me quebro facilmente!
- Minha mãe também pensava assim... e para ilustrar o futuro que nos reserva, há um mês atrás, eu, minha mãe e Nida fomos a Porto Seguro. Em Arraial D’Ajuda elas visitaram a Igreja de Nossa Senhora D’Ajuda e de-pois fomos almoçar. Minha mãe se refestelou com a comida e até cerveja be-beu. Quero te lembrar, Gilvan, que ela está à beira de completar 82 anos e caminhava com as próprias pernas.
Gilvan escutava minha narração com os olhos esbugalhados e completei:
- Hoje, meu caro Gilvan, pouco mais de um mês, minha querida mãe está sobre uma cama à espera que a mão misericordiosa de Deus a ve-nha buscar.
- O que você quer que eu faça, Chico... que deixe meu trabalho e parta por este mundão afora porque eu não sei o dia de amanhã?
- Sim... mas não de modo inconseqüente.
- Mas já te disse que daqui a cinco anos reduzirei minha carga ho-rária e vou aproveitar mais a vida.
- Balela, Gilvan, pura balela! Em cinco minutos nascem milhares de crianças e morrem milhares de pessoas, só Deus sabe o que nos espera o amanhã e o que nos acontecerá daqui a cinco minutos. Viva o agora, Gilvan! Viva o agora!
- Falar é fácil, Chico. Viver o agora... o amanhã a Deus pertence...
Eu não posso largar tudo e sair por aí.
- Mas eu não estou te mandando largar tudo e sair por aí. Acho apenas que você deve administrar melhor a sua vida.
Gilvan ficou pensativo e depois de alguns segundos perguntou:
- O que o Senhor Sabe Tudo sugere?
Ri da ironia do amigo e disse:
- Se o seu horário de trabalho está realmente extenso, diminua-o.
Reserve um dia na semana para descansar e feche o restaurante. De seis em seis meses tire umas férias. Não são necessários trinta dias, quinze dias são suficientes. Não leve filhos, cachorro nem sogra, somente a mulher. Você ve-rá como voltará remoçado, um outro homem.
- E o restaurante, Chico!? Já imaginou o prejuízo que terei fe-chando-o durante esse tempo?
Fiz uma careta não concordando com a usura do amigo e disse:
- Consiga uma pessoa de confiança – o que é difícil – e a deixe em seu lugar. Se essa pessoa não for de total confiança, faça um pequeno balanço e peça a Deus que ela lhe roube pouco. Pode ter certeza que, se houver um desfalque, você não irá a bancarrota. Em compensação esse sala-frário estará te proporcionando muito mais tempo de vida e de tesão.
Gilvan riu, segurou minha mão e disse:
- Você tem razão, Chico! Você é um bom amigo e farei como su-geriu. Que Deus esteja muito ocupado nos seus afazeres e esqueça sua mãe aqui na terra. Que Ele a proteja e lhe dê muita saúde!
Quando Gilvan terminou, não pude conter: uma lágrima rolou no meu rosto.
- O senhor quer mais uma fatia de picanha? – perguntou o garçom me fazendo voltar a realidade.
Disse que sim, pedi mais uma cerveja e quarenta e cinco minutos depois retornamos à estrada.
01/ fevereiro/2006